06/01/2021

VinteVinte - 180 (II, IV & V)

© BRANCUSI - ‘O Beijo’

180.

 

R. NO FUNDO DO M.

 

Coimbra, segunda-feira, 2 de Novembro de 2020



(...)

II

Na noite tomou chá, que lhe soube a pretéritos mais felizes.
Bento Pinto, neto de Carlos José dos Santos Pinto, lendo Victor Hugo.
Telefonaram-lhe de Arcos de Valdevez, encomendaram-lhe serviços.
Anuiu, desligou, ferveu o tal chá, tomou-o no alpendre, ao frio.
Retomou Hugo, avaliando a maestria do discurso-enredo.
Candeeiro de pé-alto ao lado esquerdo da poltrona: fanal propício.
Fechou o volume porque Arcos de Valdevez se lhe impunha.
Serviu-se de um dedo de conhaque, desejou dormitar.
Recolheu-se quando passava já alguma coisa da uma.
Teve de voltar à saleta para desligar o fanal.

Isabel Periquito, afilhada de José Rafael Mendes Porfírio, dorme.
Em o sono, desce braças de incontável profundidade onírica.
É florista no mercado municipal com égide do senhor D. Pedro V.
Herdou da saudosa mãe a banca vendedeira & o saber das rosas.
Só pensou casar-se uma vez, mas o desejado a não desejou.
Contaram-lhe a história da cigana Esmeralda, mas esqueceu-a.
Pensa comprar uma vivenda maneirinha no Tovim.
Pensa muitas coisas entre flores.
Ela própria uma delas – sonha ela.
Rosas no fundo do mar – admira-se ela.

(...)


IV

Margarida casa-se com Carlos em 1972.
Foi em um dia cinzento como certas luas.
Pintalgaram de pétalas o leito das ruas.
Do que aconteceu ao casamento, soube-se depois.

Não disponho de seguras fontes quanto ao caso.
Sei a data, os nomes nubentes, o rápido beijo.
De saber mais é que se me não deu azo.
Nem ensejo.

V

Novembro já singra.
Singra & sangra de pandémicos óbitos.
A segunda jornada nasceu fosca e fosca segue em roda.
Em Coimbra, Américo Gouveia leva Etelvina a almoçar fora.
Ele dá-lhe a escolher, ela escolhe o sítio Aristides/Ramira.

Cada corpo faz-se casa-museu de si só, não de outro.
Trigais & corvos mútua/aurinegramente se atraem.
Nenhum destes dois preceitos assola Américo.
Etelvina prefere peixe, o cherne parece capitoso.
Américo talha um bife espesso.

É por vezes feliz aquiescer à vulgaridade.
Não fazer ondas, alinhar no corso, dar adeusinhos cegos.
Por ser dia de trabalho, Américo acompanha-a ao escritório.
Dactilógrafa exímia, a velha Etelvina.
E ainda sonha tirar contabilidade, subir no emprego.

Já Américo, há tanto casado com Lídia, sonha nada.
Tem que lhe baste, não tem de fazer muito.
Etelvina há-de despir-se, preciso é não forçar.
No penúltimo dia de 83/XX, morreu-lhe um irmão.
Era Mário, de precária compleição & bondosíssimo coração.

Imagens destas germinam sem esforço em Novembro.
À mente não faltam, por assim chamar-lhes, furnas fundas.
Em uma tabacaria de esquina, Américo compra precisos.
Treslê as manchetes de escaparate, escolhe uma revista de nuas.
E vai ao Santa Cruz folhear a cerração pós-prandial, imune.



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Canzoada Assaltante