183.
MILA
Coimbra, sexta-feira, 6 de Novembro de 2020
I
Henri Prunier, capaz de maravilhas sem escola.
Figurou o tempo que lhe coube em corpo.
Às cinco da tarde pluvial, termina por hoje.
Vai ao bistrot, pensando pelo caminho em quê?
Em Marie-Adèle, a frívola bela vã Marie-A.
Henri toma em paz o seu absinto, que o devora.
Altaneira falcoaria enreda o seu coração.
Não é feliz, a paz enganosa é com ele sempre.
Trabalha muito, mas não por o dinheiro.
Poderia não trabalhar, tem rendimentos fixos.
Trabalha para deixar beleza em seu rasto.
Julga que isso é possível, talvez o seja, não sei.
Marie-A., também ela, acaba dissipando-se na bruma.
Assim foi com Jeanne-B, Caroline-C., todo o alfabeto.
Níveos colos guarnecidos de guipuras de fúcsia coradas.
Absinto para Henri, champanhe para as meninas: onde?
Au Lapin Agile, se a volta dermos pela Rue des Saules.
(Interrompe-me o chamamento do telefone.)
[II]
[Por telefone:
Morreu hoje uma rapariga da minha terra & da minha criação, pouco mais nova: a Mila Costa, nascida a 11 de Fevereiro de 1966 (uma sexta-feira).
Recordo: o primeiro nevão na Pedrulha aconteceu no dia do 17.º aniversário da Mila (sexta também).
Fria prenda, frio (dia) presente. RIP.]
III
Antes da má-nova do passamento da Mila, era de Henri Prunier o ponto.
Algumas noites esfumadas no Cabaret Aristide Bruant.
Mais solidão do que é possível descrever, pobre extraordinário H.P.
Cocottes, damas, por assim dizer, hugolianas, de póstumos sorrisos.
Henri-Maurice de Poitiers Prunier, iluminador d’outrem, sombra-de-em-si.
Nenhuma mulher sem ser por dinheiro & prestígio garantidos.
Mas também nenhuma foi tão inesquecível, uma vez em tela.
Circo atroz, sentir em lápis & tinta, neste morredouro-de-pitosgas.
Às nove da noite, já não consegue jantar, bebeu de mais.
Leva-o a casa outro bom & genial solitário: Eric Tassy.
Músico, ferozmente calado, mestre de quanto parece quase-nada.
Henri agradece, Eric recolhe-se às suas ruas nuas, uas, uas.
Isto é tudo bem mais triste ainda do que parece.
Henri passando a vida em demanda de uma beleza sem freguesa.
Eric praticando pautas que a mediocridade a medo rejeita sem escutar.
E no entretanto das duas vidas o frio exalado pela calçada.
E no firmamento o alto bocejo, todo de prata emprestada, da Lua.
Realistas, republicanos, barricadas da comuna, títeres de sempre.
Se não chegas a cisne, fica-te por ganso, não sejas pato.
A Millet Nympho canta amanhã no Coquille d’Argent.
Pagas-me o ingresso, maître Odéon-Gammeville, pagas?
De Calais a Dover, a cavalo da espuma eólica, em gume d’asas.
Henri Prunier, ao meio-dia seguinte, já trabalhando.
Serviette-Marie, gentil, leva-lhe a malga de chocolate quente.
E no entanto temos todos Pascal, Tácito, Montaigne, Horácio
– nada nos falta, querendo curtir o couro do já-dito.
A música de Tassy é hoje o conforto de muito sozinho por aí.
O traço de Prunier anda pelas retro, perdão, reprografias.
Marcel, James, Victor, Charles, Arthur, Stéphane, tantos.
Mas só um de cada vez uma vida por cada voz.
Moinhos dados ao vento mais alto, cristal de regatos.
Museus que pela noite sentem falar as peças de dia mudas.
Exumar quanto pudermos antes de nos inumarem.
Alphonse, o dos campos, já escrevive as cabrinhas ladinas.
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