03/01/2021

VinteVinte - 174 (conclusão: XI)

© Daniel dos Santos Abrunheiro (1917-1994)




XI

Por a beira de cá da vala, choupos intervalados a largo.
Manhã frígida, céu metalizado, bruma rasteira.
Chiam as juntas da carroça do almocreve Salústio.
Veterana, mansíssima, de tiro a besta Dulcineia.

Só por escrito posso aceder a tal instante em éter.
Retroverter o nascimento, ninguém pode sem leitura.
A água da vala é então límpida ainda, enguias tem,
Os choupos são jovens, de elástica beleza não-perpétua.

Talvez ao cabo da recta erijam a cerâmica tijoleira.
Diz-se que o industrial Navarro vai trazer engenheiros.
Salústio não se interessa por tal, menos ainda hoje.
Hoje, ele & Dulcineia acarretam farinha-de-milho.

Já então envelheceu – mas vive ’inda – Antonieta.
É a matriarca dos Seccos, os que fizeram a ponte.
Sem a ponte, só de barco se varava ao campo.
Antonieta obrigou a que não cobrassem portagem.

Isto é contemporâneo do nascer do século.
Ínsuas enriquecem de água, citrinos, milho duro.
Por a tarde meã, já regressam Dulcineia & Salústio.
Trazem o pacote de livros para a Senhora Antonieta.

As filhas da Senhora são Adelaide, Teresa & Juliana.
Não houve meninos, para desgosto do Senhor.
Túlio Secco morreu sem um ai na primavera.
Até de Lisboa vieram ao funeral. E de Braga.

É Adelaide quem desce pela azinhaga de pereiras-de-inverno.
Entreabre o grande portão férreo da Quinta, saúda o almocreve.
Este, desbarretando-se, entrega à Menina a encomenda.
Como nem assinar sabe, nem suspeita de ser fiel de um tesouro.

O tesouro é continente de Camões, António Ferreira, Rodrigues lobo,
Correia Garção, Filinto Elísio, Castilho, Elpino Duriense, Terêncio,
Elmano Sadino, Pedro Andrade de Caminha, Cícero, Sófocles, Ovídio,
Eurípides, Plauto, Séneca, Montaigne, Pascal, Camilo, Horácio, Virgílio.

O Campo, resistente a séculos, pasma de face ao céu.
Na jornada fria, salgueiros inclinam o rosto.
Além da curva, começa subindo a igreja.
O padre veio de Itália, ninguém sabe porquê.

O tifo, a tuberculose, a influenza – são heterónimos do Diabo.
Morrem crianças desprovidas de qualquer anjo.
Mesmo assim, há gente capaz de concertinar bailaricos.
Essa gente chega a muito velha sem passado aparente.

À mesa do casal feitor da Quinta, é farta a provisão.
Broa acabada de forno, ovos frescos, leite da cabra,
tangerinas, nabiças, toucinho-curado, café novo,
abóbora para filhós, arroz da compra, feijão enxuto, bacalhau inteiro.

O feitor é Carolino Pratas, a mulher é Rita Maria.
Governam a moagem, os jornaleiros, a criação, o forno.
São de escrupulosíssimo rigor na prestação de contas.
Túlio Secco não senhoriaria outros em lugar deles.

Teresa & Juliana preparam o chá tardio.
Deliciada, a Senhora mãe autografa a data da vinda dos livros.
Adelaide compõe no lar o lume para o serão.
É muito boa menina, bem-criada & bem-mandada. 

A seu canto, enquanto lhe servem o chá, Antonieta pensa.
Perpassa-lhe a mente a consciência de não poder ler tudo.
Envelheceu muito no ano transacto, a visão turva-se-lhe.
Roga tão-só que seja possível ler no Paraíso.

Já em seu casebre Salústio coze batata, nabiça, bacalhau.
Dulcineia, a formosa pronígrada da sua vida, já repousa.
Salústio não tem mulher, não calhou, não procurou.
Num pote, amealha os cruzados da demasia.

O padre italiano, calabrês de origem, chama-se Italo.
O povo chama-lhe naturalmente Padritálio.
É um homem frugal, macérrimo, de entranhas doentes.
Basta-se a chá-de-folha-de-laranjeira & a broa velha.

Descamba a noite, até o sono sente frio.
O bosque estalida sílabas suspeitas.
Fulge o quarto-crescente no veludo sideral.
Tremula das chaminés débil fumarada.

Só por escrito posso perfumar-me dessa lenha ardente.
São mudos os meus passos na pedra esparsa das ruelas.
Não há quem me sinta: sou o fantasma d’ora a cem anos.
Talvez alguém sonhe comigo – mentindo-me já nascido.

Silva o ingente silêncio de há um século.
Cão remotíssimo ladra duas frases rimadas.
Salústio lava o prato, recorda a mãe fazendo o mesmo.
Era Angelina. Mondou na Quinta. Alguém a emprenhou.

Por a beira de lá da vala, o poema é outro. 







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