22/01/2021

VinteVinte - 210


Antero de Quental
(1842 - 1891)



210.

 AVENTURA

 Coimbra, terça-feira, 15 de Dezembro de 2020

 

    

    Saio à rua para assinar um papel. Hesitante meteorologia: de quando em vez, uma pouca de sol calafriorento, geral nublação. Já me não lembrava bem de estar fora de casa. Uma pessoa habitua-se. Ou resigna-se. Espero ter o papel tratado sem grande demora. Apanho depois o autocarro de retorno, abrigo-me, não faço ondas. A aventura de estar vivo pode prosseguir sem mais interrupções. Não digo que seja mau sair. Nada disso. Mas é verdade que a pessoa se resigna – até ao cativeiro. Em duas semanas, este ano esquisito estará calendariamente morto – mas as sequências, sequelas, consequências & corruptelas dele prometem (ou ameaçam) persistência. Não creio por aí além na “vacina” que aos milhões vai furar a grei. Parece-me negociata milhãonária. Continuamos (este corrente mês sobretudo) a contar óbitos impiedosos. Protegi-me de manhã escutando a senhora diva Anne Sofie von Otter cantando em francês. Tive depois (agora) de sair. Não por muito. 

    II 

    Penso não causar mal ser-se português. 
    Mal também não fará reler os nossos. 
    Levar Antero à rua; folhear Camões, piscar-lhe o (outro) olho, gargalhar o Eça, sublinhar bem a clara desenvoltura de Garrett. 
    Nada disto fazer, todavia, também não é maligno. 
   Ajuda-se uma velhota pela passadeira, informa-se itinerariamente um cego de fora, diz-se ao japonês onde é a Igreja de Santa Cruz. 
    Evite-se escarrar o chão todo: é feio, porco & mau. 
    Com isto agora do vírus-chinoca, sempre há mais tempo para repensar o que resta de vida, Margarida; o que sobra de ano, Germano; o que falta de instante, Violante. 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante