199.
DIEGO, ALADO
Coimbra, quarta-feira, 25 de Novembro de 2020
(...)
II
O indivíduo Galhardo percebia de química. Certo vegetal de colombiano plantio recebia dele trato a querosene, cal, algum ácido, éter, acetona. A lama resultante, devidamente pulverizada & branqueada, já pode matar – a troco, claro, de muita plata. Caso contrário, plomo. Galhardo está reformado – definitivamente, aliás. Alguém lhe rebentou o crânio à bastonada. Não vi quem o chorasse.
III
Rebenta a má-nova: morreu hoje o Maior dos Grandes – Diego Armando Maradona. Deixa-nos obra incomparável. Maior dos Grandes, reitero. Obra incomparável, reforço. Primus inter pares.
IV
Doçura crepuscular de extintos estios
Envolve ainda a cuidosa atenção ao mundo
Coisas há que permanecem, são recorrentes
É bom sopesá-las no balancete de cada dia
Mal ao mundo não vem de atentar-se-lhe
Menos conta (nada conta) o aparato gritante
Mais vale a áfona lucidez mirante
Creio nisto sem ser religiosamente
Religiosa mente me falta felizmente.
(V)
(Disponho de uma colecção de tesouros incrustados na mente. Nem sempre sou pródigo de sua guarda – mas bem mais insensato fui, a isto quanto, em mais moços anos.)
VI
Duas senhoras moram na casa branca com nespereira de quintal.
Uma é reformada da secretaria do hospital: Graciana.
A sua co-inquilina, Adélia, vive do amparo dela.
Não se diga que Adélia serve de criada a Graciana.
Ajudam-se, são mútuas, ambas beneficiam do entendimento.
Os perversos (que os há sempre) anatematizam-nas de lambidas.
Erram acintosamente, mas ninguém lhes corta as línguas más.
Elas vivem porém suas vidas em calada serenidade.
Uma sobrinha de Adélia, casada na vila, traz-lhes provisões.
Ferve-se água, infunde-se-lhe cevada, merendam bolachas com ela.
A sobrinha chama-se Cidália, é uma mulher-de-armas.
Talvez por tal se casou com um enfèzado, que domina a preceito.
O fruste parrana, Arménio, é dos que vilipendiam as senhoras.
Cidália já por duas vezes o esbofeteou por tal nojo.
Ele nem assim aprende, se calhar gosta de ser assoalhado.
Ora, sei destas coisas porque ainda sou primo-esquerdo da Cidália.
Por saber que escrevo, ela não me conta tudo, escolhe o que me diz.
Ora, como bem sabeis, eu invento pouco, minto quase nada, certo?
Muito certo. Assim sendo, tranquilizai-vos quanto às velhotas.
Têm uma existência bonita, amanham cada hoje, sem amanhã nem ontem.
VII
Consuma-se este ano de epidémica mortandade,
já pouco falta a Novembro para fenecer sem volta.
Quem, de mês & ano estes, lembrar a hora estulta,
decerto não sofrerá lembrança de mor bondade.
Morreu hoje El Pibe, o grande Diego Armando, o mirífico Maradona.
Há 45 anos, Portugal via morrer algo chamado PREC.
Só o ir veio para ficar, nada humano há que fique.
Dorme, q’inda a noite é uma menina. (*)
(*) Linha de José Afonso.
VIII
Há muitos anos que sou
um desses doidinhos-mansos
que, em vez de tirar, atiram:
refiro-me a alimento às aves.
Ao telhado das garagens
na traseira do prédio
acorrem pontuais as aladas.
Não só o comum pardal,
não só a vulgar pomba.
A preciosa arvéola,
a rara poupa,
o furtivo melro,
a feminil rôla
– seres da minha melhor graça.
Cada uma das aves
aproveita o bocado.
São elas o instante,
nada curam do Tempo.
Eu sim, curo dele.
Não me curo dele.
Há muitos anos que
etc.
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