Noivos repurificados
por esse milagre de tontos chamado literatura
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Segue-se um fragmento composto no Domingo, 7 de Abril de 2019, e recomposto depois, na Segunda-feira, 29 de Abril de 2019, e na Terça-feira, 30 do mesmo do mesmo – mais as emendas de hoje. São linhas sob esta sumária inscrição: primeiro esboço. Cá vai:
Nem o prodígio insensato de acordar viva ao cabo de oito anos e um mês (menos quatro dias) de morta fez com que menos a espantasse o milagre de isso a que toda a gente, à falta de melhor palavra, chama realidade.
Isto aconteceu ao primeiro anil da aurora – e ao cabo de uma noite sem lembrança durante que a chuva purificara o silêncio do pátio, primeiro, do monte, segundo, e, derradeiro, dos campos de arroz e laranjeiras que à melhor esperança abrem nos corações a ânsia do mar.
Ainda sem permitir-se o mexer de um lado, a primeira coisa a ocupá-la foi certificar-se de que a seu lado continuava dormindo o homem da sua vida, esse já quando vivo fantasma que havia vinte e cinco anos (menos dezassete dias) se resignara à autoridade óssea do sono até então perpétuo.
A chuva matrimonial amanheceu de ares rarefeitos pela lentidão da morte dupla, que é a dos casados toda a vida. Sete rosas naturais continuavam coroando o psiché de triplo espelho – uma rapariga & seis rapazes que só então puderam permitir-se murchar de acordo com o ditame da falência vegetal.
Tudo isto deve ser contado agora por ser agora que contado pode ser. O próprio sofrimento estagnado acaba merecendo remissão, facto que nos leva a preferir a hipocrisia armada de Deus à sinceridade desarmante do Diabo.
Sendo de diversa natureza os minutos que não servem para os relógios por só serem capazes de contar a eternidade, não é aqui contável o tempo que ele demorou a despertar depois dela. Conta que acordou. Sem interrupção nem lapso, ele continuou de imediato a amá-la para sempre. Isso – e a pensar de pronto naquela sexta das rosas em número sete que primeiro se apagara.
Ela não fez por menos mas continuou sem falar, no intuito de prolongar a delícia tão simples que é a de negar à morte a loucura de não ter vivido. Noivos repurificados por esse milagre de tontos chamado literatura, acharam-se prontos para o primeiro dia de uma eternidade diferente, a qual costuma ser apanágio das tipografias.
O anil arterial da alvorada alvejava intermitências na persiana, que era preciso descerrar para reiteração do pátio, onde já se alinhava o famélico elenco de cães, gatos, patos, pombos e pardais que desta casa houveram sempre mercê. Então, não menos que olímpico, ele levantou-se do leito e foi-se a ferver o leite para ela, que ela preferia com café negro de seis colheres em água só para quatro.
Era como se nem segunda-parte deste livro houvesse – mas tão-só o prodígio de a humildade pagar em amor o infinito amor recebido, esse mesmo que a morte não entende, Deus não compreende e o Diabo impõe.
É depois dela que ele acorda para a despesa impagável de se ver vivo quando nada ficou por pagar. Sente dela a volumetria morna de fêmea fértil, essa ilha sem homens por todos os lados que um eu torna mãe. Pasma um pouco ante a febre que desenha o tecto do convalescente. Sente a existência pressurosa dos animais no pátio, a vigília do cão preferido, a constante indignação sopeira das galinhas, o chumbo alado das pombas, a impertinente alegria dos pardais, a solidão de professor-primário do alto milhafre.
Um roçagar de papéis pela fímbria inferior da porta da rua: cedo de mais para o carteiro, terror fantasmático do espectro que escreve e quer dar a ler. É ele quem então reabre as amáveis hostilidades da fala:
– Sentiste aquilo? É quê, cartas?
Ela escutou também os papéis metidos à força em casa:
– Não deve ser cartas, deve ser folhas de diário tingidas e atingidas por alguma dessas sete rosas.
– Seis – corrige-a ele.
– Sete sempre, homem, o Jorge continua a contar.
– Que é dele?
– É doutro livro, não te ponhas já a pensar nisso, que me morres outra vez.
Ele serve-lhe o café com leite no ponto de fervura. Torrou pão de há quase vinte anos, lambeu em ponta de faca a manteiga de que ela lhe foi nata sempre. Estão na cozinha de dois metros-quadrados, continua pingona a torneira da água-quente, não há maneira de cá vir o Zé Agostinho.
Ele:
– E aquilo da carta?
– Chama-lhe carta, pronto. Se calhar, é carta, se calhar tens razão.
– Que é que diz?
– Uma das sete volta para cá, eu estou doente, eu sou uma viúva doente, o Tempo apanhou-me a jeito, já lavo o teu mármore, queixas de amor, coisas assim.
– Assim como?
– Amor. Muito verso, muita cantilena. Miúdo que não aceita o preço do pão: ou então: que é suor escusado.
– Que o Diabo amassou.
– E Deus vendeu. Sim. Isso mais ou menos.
– O meu Pai, uma vez…
– O teu Pai era bom homem. Lembro-me dele: azul-índigo diluído em água, olhos da segunda-rosa se os da segunda-rosa não fossem tão castanhos.
– O Van Gogh, no entanto…
– Maio acaba sempre cedo.
E ele:
– Nós não.
E ela:
– Nós nunca.
– A questão daquilo a que chamas carta – diz-lhe ela.
– Estou a pensar noutra coisa – isola-se ele.
– Outra vez. Lá estás com os ciprestes azuis do Holandês.
– O azul é mais pobre do que o verde.
– Tenho de lavar a cozinha com soda-cáustica: cheira a abandonado, isto cheira a abandono.
Pouco demorou até que a cozinha cheirasse a vento-solto dando em água fresca. Baixa a ponto de mal meã, ela desenvencilhava a sua morenidão de índia mercê de gestos precisos, de esforço calculado ao milímetro. Louças, vidros, torneiras, fogão, frigorífico, madeiras, chão, paredes e tecto só tiveram de haver-se com o brilho incandescente que as melhores almas têm por limpeza.
Enquanto ela lidava, ele arriscou dois passos no pátio. O cimento gretara-se à maneira dos pergaminhos monásticos – e pelas gretas rompiam, com branda mas invencível fúria, madeixas de erva azul.
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