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JOSHUA BENOLIEL
181.
ENSARILHADAS
Coimbra, terça-feira, 3 de Novembro
de 2020
I
Pouco faltando para as onze da manhã, senhora com garrafão de azeite na Fernão de Magalhães. Nem nova nem velha. Mascarada, como toda a gente. Ameaça-se perpétuo, este carnaval triste que os chinocas impuseram ao resto do mundo.
A dita manhã, alheia ao pandémico formigueiro, é de um azul puríssimo. A luz parece lavada a sabão. Tive de vir à rua por causa de um papel de repartição-pública. Papel tratado, estou já de retorno ao tugúrio.
Na paragem-bus, mais mascarados sorumbáticos. As pessoas têm aquele ar desamparado de quem não acha ter sido criado para isto. Isto: dissolução do presencial, fantasmagoria do virtual-on-line.
Defendo-me da peste-asiática com o século XIX francês. É quand’onde tenho andado. Leio a vida de Victor Hugo tal como a retratou André Maurois. É bem preferível ao século XXI / Planeta Terra. Não contagio nem sou infestado. Ouço & calo-me.
A senhora do garrafão de azeite vestia casaco azul-escuro, decerto caro. O marido deve chefiar alguma coisa em algum sítio. A filha deve estar a tirar medicina dentária no Porto. O filho é capaz de andar nas informáticas. Para já, neto nenhum, a vida não está para luxos desse calibre. E como o filho tem dado mostras de preferir rapazes, só se vierem da jovem doutora-dentista, qualquer dia, que isto quem vê cáries também pode ver corações.
II
E quais árvores ao chão pertencemos, mas das rasteirinhas.
Içamos, é certo, a cabeça ao céu, de extáticas cornélias.
Por terra terr’astejam viscosas damas-das-camélias
& rosas-do-adro mui, mas mesmo mui, coitadinhas.
(...)
IV
Leónia Fortunata, amiga de Adélia Nastro.
Absolvida da acusação de furto em loja.
Representou-a o advogado Filipe Castro.
Estava em causa um frasco de rebentos-de-soja.
Por agressão a mulher & sogra, foi Raul detido.
Responde quinta-feira ao juiz presente.
Chegara a casa carregadinho de aguardente.
Do tudo, nada lembra – e parece arrependido.
V
Armas ensarilhadas no centro da praça.
Cavalos, insurrectos, basbaques, um fotógrafo.
Os irmãos Marques – José & Faustino – em bandos opostos.
José é realengo, Faustino é carbonário.
A massa bruta não tem escola a que vá-
Militares analfabetos também não escasseiam.
Em fundas tabernas-carvoarias conspira-se baixinho.
Carne estragada não deixa de ser comida.
Hospitais mais infectos do que chiqueiros.
A vida mesma é já em si ultimatum de si.
Estátua régio-equestre vernegrecendo-se ao que chove.
Ardinas descalços compõem o postal típico-pictórico.
Apolino da Luz-Manta é abatido na Travessa do Guarda-Mor.
Só muito depois se apura que não foi por política.
Foi por uma história de saias casadas & cornos vindicativos.
Falaremos nos Banhos de São Paulo, sim?
Vi-vos vivos no Café Flor do Rato, companheiros!
Um inglês negociante-importador de vinhos foi incomodado no Rossio.
Era Cyrus Churchyard, assustaram o homem, não mais cá tornou.
Todo o homem-mesmo-homem usa chapéu, bigode & barba forte.
Por esta altura, o meu paterAvô está nos seus trinta anos.
Por este ano, o meu materAvô conta oito de nascido.
Esta é a idade da minha pré-história, por assim dizer.
Folheio as imagens, sinto anacrónica nostalgia, sou tonto, não tenho chapéu.
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