19/01/2021

VinteVinte - 203

EDUARDO LOURENÇO (1923-2020)

Fotografia/© de Vitorino Coragem


203.

 

PELA VINDA DO CALIFA

 

Coimbra, terça-feira, 1 de Dezembro de 2020

 

 

    I

    Instruções de Bruxelas. Emissão de dívida. Pacote total. Crise da pandemia.
    Restauração da Independência? Renovação do Estado de Emergência.

    (II)

    (Última-hora: morreu Eduardo Lourenço. Nascera a 23 de Maio de 1923. Pensou bem, escreveu muito bem, existiu muito, continua importante.)

    III

    Em aldeia que só por aqui visitar posso, empedraram belamente o largo central. Parece & aparece mais duradouro o povoamento. O povoado é sito em garganta de cabêços rochosos, cuja espinha fortifica a região agreste. Por aqui se dá bem a longevidade humana: gente – que não lê – dando matéria de livro. Conheço-a – e nunca a vi. Sei dela – e nunca com ela conversei. Poucas máquinas por aqui. Comunhão de animais, também estes idosos. Não foi há muito que trouxeram a luz eléctrica. Veios de água frígida afloram as encostas acalhoadas. É peculiarmente pungente o olor das ervas-bravas. As velhas fazem chá de flores inverosímeis. Suspeitam de – mais do que crêem em – Deus. Sabem-no de multimilenar pacto com o Demónio. Pertenço a tal suspeita – ou à Língua em que é rumorada.

    IV

    Estêvão, rapaz da capital. Veio contrair noivado à bela Coimbra. Corria o ano 1944 d.C. Lá fora, no mundo fora da bênção de São Salazar, grassava & desgraçava a II Grande Guerra. A noiva era Catarina, filha do Mendes dos móveis. Casaram-se sem mais história. Estêvão vinha com o sogro aqui ao Santa Cruz. Tomavam café, dois dedos de licor lousanense, liam os jornais, conversavam sem pressa. O senhor Mendes ia para a loja, Estêvão voltava ao laboratório. Era analista encartado de sangue, urina & fezes. Era poeta também – mas sabia-se medíocre, sem rasgo, sem aquela pepita de sal que alvoroça a palavra. Em casa, que era na Rua de Santa Tereza, Catarina cuidava da mãe, que entrevara depois de parir a menina. Vinha visitá-las uma prima que era tão Beatriz quão bondosa. Trazia sempre bolo-de-Ançã para o chá das três tomado ás cinco. Em 1947, a senhora Laura Mendes faleceu em odor de santidade. Beatriz sentiu-se mal no enterro, nem com amoníaco deu de si acordo, chegou já cadáver ao hospital. O senhor Mendes começou a mostrar-se na companhia de uma São da Rua das Rãs, da qual se dizia ser amásia – também – de um Lopes da PSP. Estêvão & Catarina não geraram prole. O senhor José Mendes morreu em 1960. Estêvão, em 1974. Catarina, em 1987. Joana Rita, filha de Beatriz, herdou quanto a São não conseguiu derreter. Não herdou muito, por conseguinte.

    V

    Ao salão-de-baile do Recreativo da minha terra veio o conjunto Califa Ricardo & Os Sombras, penso que em 1967. Ou, o mais tardar, 1968. David Mota & Manuel de Jesus estavam na guerra colonial, aquele em Moçambique, este em Angola. Ambos lá caíram, só depois do 25-de-Abril foi possível dar-lhes cá funeral com honras, ninguém sabendo embora se nos caixões vinham eles ou sacos de areia em lugar deles. Califa disfarçava mal ser homohomem – mas cantava que nem rouxinol poisado no telhado do São Carlos. Os Sombras que o acompanhavam, liderados pelo guitarra-solo Hugo Marvão, eram sábios tocadores, o Acácio disse tudo: “Têm ciência a tocar.” 



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Canzoada Assaltante