02/01/2021

VinteVinte - 174 (V-VII)


V


Tudo é passagem, tudo é à passagem. 
Somos segmentos de variável extensão. 
Eu por exemplo persigo a imagem. 
Tu levas a passeio o teu cão. 

Alguém à janela do prédio amarelo, seis da manhã. 
É Ramiro, contínuo da escola preparatória. 
Levanta-se cedo sempre, mesmo sábados & domingos. 
E hoje é segunda, não tarda a sair para o trabalho. 

A casa azul é do casal Ribeiro, Tomás & Ermelinda. 
Ele sai às sete & ¼, ela sai antes das oito & ½. 
Dão-se bem há uma porrada de anos. 
Ele entrega encomendas-expresso. Ela faz limpezas. 

Terreno baldio amplo entre a clínica veterinária & a casa de Isabel. 
A casa de Isabel é a verde, fazem-lhe sentinela dois cedros. 
No baldio brincam crianças livres, animam as horas. 
Toda a vida ali brincaram infâncias deste bairro. 

Estão para França os herdeiros da vivenda rosa. 
Sempre houve quem lhes a quisesse comprar, mas não vendem. 
Vêm em Agosto, arejam-na, mal se dá por eles. 
Nem nome nem saudades cá deixam. 

Lourenço & Madalena regem a mercearia. 
A loja está pintada de laranja com rodapé branco. 
Antigamente era toda castanho-carne. 
E tinha a placa de telefone-público, mas já não se usa. 

O lar dos velhos é branco-marfim com pinturas artísticas. 
Árvores, aves, a torre da universidade, notas de música. 
Isto da pandemia tem-os ceifado a eito. 
Antigamente morriam também, mas não se falava tanto disso. 

VI 

Pai & filho de bote no canal, lá vão, cá vêm. 
Já o pai do pai assim andou toda a vida. 
Levam, trazem, são parte do Tempo mesmo. 
Do terraço alto desta página os miro. 

    [VII] 

    [Trabalhei hoje a sério no que considero meu dever. Sinto uma fadiga adocicada, serena, suave. Labutei nos papéis, disso falo. Fui por imagens, espessuras, periferias, dimensões, efeitos, defeitos, por aí. Não sonho com a rua. O meu confinamento (ainda) não é sofredor. As televisões berram sinais de alarme. O cabrão da Turquia assanha os retardados do fundamentalislâmico contra o Presidente Macron em particular & a França em geral. Tenho-o dito & redito: a nação francesa está finalmente a pagar a sério o ter aberto as pernas a tanta escumalha. Por mim, nem vou a França nem, por ora, sequer ali â Baixa. Estou em casa. Trabalho (n)os papéis. (...)]


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Canzoada Assaltante