V
Tudo é passagem, tudo é à passagem.
Somos segmentos de variável extensão.
Eu por exemplo persigo a imagem.
Tu levas a passeio o teu cão.
Alguém à janela do prédio amarelo, seis da manhã.
É Ramiro, contínuo da escola preparatória.
Levanta-se cedo sempre, mesmo sábados & domingos.
E hoje é segunda, não tarda a sair para o trabalho.
A casa azul é do casal Ribeiro, Tomás & Ermelinda.
Ele sai às sete & ¼, ela sai antes das oito & ½.
Dão-se bem há uma porrada de anos.
Ele entrega encomendas-expresso. Ela faz limpezas.
Terreno baldio amplo entre a clínica veterinária & a casa de Isabel.
A casa de Isabel é a verde, fazem-lhe sentinela dois cedros.
No baldio brincam crianças livres, animam as horas.
Toda a vida ali brincaram infâncias deste bairro.
Estão para França os herdeiros da vivenda rosa.
Sempre houve quem lhes a quisesse comprar, mas não vendem.
Vêm em Agosto, arejam-na, mal se dá por eles.
Nem nome nem saudades cá deixam.
Lourenço & Madalena regem a mercearia.
A loja está pintada de laranja com rodapé branco.
Antigamente era toda castanho-carne.
E tinha a placa de telefone-público, mas já não se usa.
O lar dos velhos é branco-marfim com pinturas artísticas.
Árvores, aves, a torre da universidade, notas de música.
Isto da pandemia tem-os ceifado a eito.
Antigamente morriam também, mas não se falava tanto disso.
VI
Pai & filho de bote no canal, lá vão, cá vêm.
Já o pai do pai assim andou toda a vida.
Levam, trazem, são parte do Tempo mesmo.
Do terraço alto desta página os miro.
[VII]
[Trabalhei hoje a sério no que considero meu dever. Sinto uma fadiga adocicada, serena, suave. Labutei nos papéis, disso falo. Fui por imagens, espessuras, periferias, dimensões, efeitos, defeitos, por aí. Não sonho com a rua. O meu confinamento (ainda) não é sofredor. As televisões berram sinais de alarme. O cabrão da Turquia assanha os retardados do fundamentalislâmico contra o Presidente Macron em particular & a França em geral. Tenho-o dito & redito: a nação francesa está finalmente a pagar a sério o ter aberto as pernas a tanta escumalha. Por mim, nem vou a França nem, por ora, sequer ali â Baixa. Estou em casa. Trabalho (n)os papéis. (...)]
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