© DA. 20 de Dezembro de 2021 - 18h14m24s
206.
SE ME CHAMASSE DANIEL ALZHEIMER,
NINGUÉM ME ESQUECERIA
Coimbra, de sábado, 5, a terça-feira, 8 de Dezembro de 2020
I
Vivendo por parcelas, só a morte nos dá soma. Não é isto mal nem bem, isto não é bom nem mau: é o que (se) pode ser.
Permito-me considerar coisas destas porque, enfim, sim. Já, julgo, V. disse que sou do tempo em que os futebolistas não usavam, como agora usam, soutien.
Eu sei: os dois primeiros parágrafos não estabelecem de rompante uma reputação literária. Eu sei. Ocorreu-me no duche que a melhor, se não única, maneira de não ser esquecido, de firmar nome duradouro no panteão livresco – seria chamar-me Daniel Alzheimer. Vá. Digamos. (...)
II
Gratidão é o que sinto à plena portuguesidade desta finimanhã
Fim da manhã aberta à incerteza da tarde que se segue
Campânula nublada interdita o sol, o vento é felizmente frio
Vê-se daqui primeiro o cedro, o limoeiro é depois no olhar
Resultou bem a hora de saída, uma vez na vida.
Pouquíssimo havia a tratar fora de casa, hoje como de costume
Levei à repartição um papel sério, seriamente mo aceitaram
Algumas moedas me levaram ao pão, ao lápis, ao café, aos bolos
Não tarda depositarei os ossos no mármore figurado da casa
É quanto lar posso, há quem ande bem mais à rasca.
Parece natura da coisa só depois de vivida parecer perdida
Sereno é o animal que a vive sem interrogá-la
A infância é essa primacial coisa que um fósforo queima
Depois já se sabe, a artrite, os mínimos colapsos cardíacos
A pasmaceira sem diferença, a gratidão que às vezes pensa.
(III)
(A memória conta a si mesma contos a que aumenta pontos.
Não o faz por ser mentirosa, fá-lo por sujeita a natural compensação.
A morte opera no sentido da autojustificação, inocentinha.
É a ingénua dama que vai aos bois-de-boulogne à caça, é sim.)
IV
Certa quase-hesitação ronda-me por vezes o instante.
Não atinge gravidade, ronda apenas a minha carcaça.
Pessoas há-de haver sujeitas a símil titubeante
hesitante p’ra-trás-p’ra-diante estado-sem-graça.
É bicheza humana o que enfim ao espelho miro.
Raspei há pouco a barba, alisei-me o focinho.
Ninguém me tem conversado, coisa que aliás prefiro
a tretas que não valem o cabrão dum tostãozinho.
O hóquei-em-patins não é desporto olímpico porquê?
Esperai: vão fazer do breakdance modalidade das olimpíadas!
Este tempo é grotesco, é tempo de vis piadas.
Campeia a ignorância, tudo manda quem não lê.
Feia era, desgraciosa idade, merda d’época, anos maus.
Saudades não deixo: eu mesmo podendo as não sentiria.
Devenho velho amargo que em tudo vê caos,
desse caos ignorante que nem é anarquia.
(...)
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