10/01/2021

VinteVinte - 185 (abertura: I & II)


Nesse mesmo 1914 nasce o meu paterTio Alberto dos Santos Abrunheiro, 
que há-de morrer em solidão a mais estreme no Caramulo, quando vier o ano 1980. 



185.

 

AO NEFOSCÓPIO

 

Coimbra, domingo, 8 de Novembro de 2020 (I)

 

    I 

    Palavras impõem-se ao rebanho, como recolhimento-obrigatório. Até o nefando politicamente-correcto vacila um pouco. Este ano de praga vale, historicamente, por antimnésia. Ou não vale – dá no mesmo. 

    II 

    Penso por momentos no pobre Henrique Albano Alano, tão cedo ido. Devorou-o, logo no primeiro ano, a Grande Guerra. Perdeu-se-lhe o corpo, deveras devorado pela ingente monstruosidade da maquinaria bélica. E no entanto deixou manuscritos preciosos, que em boa-hora o cunhado, Tiago Ribeira, ordenou, paginou & publicou. O rol bibliográfico de Alano compreende:  Paraíso das Minhas Ruas (1908); Alta, Demorada, Branca Senhora (1909); Outubro de Outra Infância (1910-11) & Correspondência Vária (1904-1914). Domingos tenho consumido relendo estas obras de não afectada preciosidade. Remetem-me elas para o tempo mais ainda interior que anterior de um moço de enorme talento, trágica figura decepada pelo inferno legalizado de 14-18/XX. 
    Hoje é, precisamente, domingo. Pertencem-me estas horas cruas de um século velho à nascença. O ano corrente é chinês, viral, pandémico, humanicida. A poluição tornou-se interior, não já só ambiental. Campeiam os adventícios-apocalípticos. Barbudos maometanos andam, às aduas, a matar nas megametrópoles. Calados como ratos, israelitas vão queimando palestinos. Etc. infinito. 
    Aproveito Henrique Albano ao som de partituras de extrema tessitura. Torna-se afinal boa a hora, quando lá fora o tempo parece não saber que fazer de si mesmo. Faço hoje 56 anos & ½. Já é muita duração. Não tem grande nem pequena importância. Tem dado para aproveitar livros – de que os supracitados de Alano são franco exemplo. 
    Da marquise, porém, miro além o hiper chamado Lidl. É frequentado mormente por gente não-abastada dos bairros que lhe fazem cintura. O pão não é mau, os preços são, no geral, próximos das reformas escassas & dos salários-mínimos. Tenho lá ido ao feijão, às conservas, às massas, ao peixe congelado. Só quando posso, naturalmente. Na volta, mas só às vezes, acampo no exterior mobilado de uma casa-de-pasto que dá a frente à chamada Estrada-d’Eiras. Arraial assentado, leio o pasquim local – começando sempre pela Necrologia. Vou recolhendo fotogramas-verbais. Há por vezes gente á vista – mas a regra impera deserto. É mesmo assim como V. digo. 
    As horas desfazem-se dias com suas noites iguais. Ainda o corpo, afinal são, me sustenta a atenção. Acamado para ingresso onírico, sinto comum juras antimonárquicas do tempo em que ’inda vivia o bom Henrique A.A. Movimentos armados surdem pela noite toda vielas. Murmuram-se senhas & manipulam-se tésseras. É como, visto da Lua, um chão de mosaicos vivos. Suicida-se Cândido dos Reis, julgando mal a situação. Um doido assassina Miguel Bombarda. Machado dos Santos terá também morte-macaca, mas só d’hoje a uns poucos anos. Assim adormeço. 
    Adormecido, singro no encapelado torvelinho da incerteza. Espectros da infância chamam-me para brincar com eles. Dedos enfarinhados de giz por ter ido ao quadro calcular aritmética. Estou de calções. O senhor Elói lava as mãos no fontanário em frente à Odete do Armando Curto. O Kalinka, desavergonhado, põe-se a cagar debaixo do pessegueiro da senhora Eduarda. Não soa som nem pinta cor, o tracto do sonho. Funciona como ilusão alternativa a essoutra ilusão chamada realidade-acordada. 
    Desperto, a luz agrava o estremunho. Já os móveis não estalidam como de noite. Sumiu-se na morte o senhor Elói. É-me devoluto o que já foi pleno. É o mundo da farmácia lá em baixo, da pastelaria logo a seguir, da rotunda que congrega leste, norte, Choupal, Casa do Sal. Sob a via-rápida, os sem-abrigo mais silenciosos do planeta. Segue sendo baldio o que foi a LUSA-Artefactos de Borracha. Desempregados mascarilhados à porta do Centro de (des)Emprego. Belo par de olhos no Café Silvano. Baldio onde acampou o circo paupérrimo a que o Rui me levou há quinhentos mil anos. Antes dormir – sem sonhos, por favor. 
    De modo que Henrique Alano morre logo no ano-primo da Grande Guerra. Nesse mesmo 1914 nasce o meu paterTio Alberto dos Santos Abrunheiro, que há-de morrer em solidão a mais estreme no Caramulo, quando vier o ano 1980. Temos tempo para tal. 
    Um lençol de sol logra estender-se no Bolão. Dura muito pouco. A tarde é já começada. Raríssimo azul pintalga o campo-de-visão do nefoscópio. É bonito, o panorama pardacento. Convida à interiorização, que não tem de ser solipsista. 
    Deveras não tem. Arrumando objectos no quarto-escritório, do velho espaço floresce um respiradouro novo. Ainda há tempo-espaço para escrevive algo mais. Não, infelizmente, para Henrique Albano Alano. Nem para Alberto dos Santos Abrunheiro. 




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Canzoada Assaltante