© E. HOPPER
V
Ela criou uma zona de silêncio em seu torno – talvez não seja errado chamar-lhe zona-de-decência. As filhas não queriam nada com ela. O marido contrariou o Mártir de Alcácer-Quibir, desaparecendo numa manhã de nevoeiro.
Restaurava coisas. Era perita na reabilitação de objectos antigos – menos o próprio passado. Foi ela a dar vida nova ao mobiliário da casa-de-jantar do Paço, quinta imemorial dos Brandões. Consertou o órgão da igreja. Desoxidou relógios parados noutro século.
Completou sessenta anos a 22 de Março último. Disse nada. Não frequenta qualquer rede-pseudo-social da modernidade. Passou a efeméride natalícia a consertar as próprias ferramentas de conserto.
Não se acha nem feliz nem infeliz nem coiso. Reparou um leitor de cassettes esquecido pelo homem que se esqueceu de ter tido. Põe a tocar as velhas fitas de quando em vez – mas não muita vez, pois que algumas repõem em cena cenas de baile que não valem já um pasodoble ou a pena de pensar nelas. A zona-de-silêncio é a melhor ideia.
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