V
O cão branco fareja o monturo de sobras na viela para que dá a traseira do
restaurante. É a noite mais fria do ano até agora. Pouco falta para a
meia-noite – mas os cães não usam relógio. Nem perdem tempo. Há um passadiço
curvo sobre o canal. Antes de surgir o cão, um homem inclinou-se da grade e
vomitou para a água. Recomposto, acendeu o cigarro, foi à vida dele. Por ter
chuviscado durante a tarde, o chão de pedra brilha sob o lampião. O sítio é
buliçoso de manhã, cargas & descargas, varredores, estudantes,
bebedores-matinais em pandilha alegre. À tarde, o movimento sossega. À noite, é
um pardieiro a céu-aberto. O cão branco é de ninguém. Deve ter quatro anos.
Intriga-o a voz do papagaio que durante o dia está à janela do primeiro-andar
ocupado pela velhota Mabília. A dona tira-o do frio antes que a noite desabe.
Acontece o lampião não ter luz para dar. Um pouco de vento mais forte é
suficiente para fundir a lâmpada. Os da Câmara demoram uma eternidade a vir, é
preciso ir lá chateá-los, lordes com fim-de-mês ali certinho. O cão encontrou
arroz-de-carne. Tem finalmente o dia ganho, embora só à noite. O cozinheiro do
restaurante sabe que o cão lá vai. Por sabê-lo, dispõe as sobras a jeito.
Também Mabília traz por vezes alguma coisa para o monturo. O mundo arranja
maneira de funcionar. Antes de ser casa-de-pasto, era estabelecimento de
carvoaria. Foi há muito anos isso. Morreram quantos poderiam lembrá-lo, excepto
a velha Mabília, que então era menina mas já capaz de lembrança. Também eu me
lembro da carvoaria, quando não estou ocupado a vomitar para a água fétida do
canal.
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