09/01/2021

VinteVinte - 184 (IV)

© DA.  8 de Janeiro de 2021 . 18h18m23s


    IV

    Entre vivos & mortos, Coimbra tem-me dado uma galeria nada menos que próspera. É verdade que os mortos são de um apelativo mais insistente. Isto não é desmerecer (n/d)os vivos. A aura da morte, que o Ultra-Romantismo consagrou, impõe literatura – não forçosamente sempre da boa, é certo: mas literatura sempre. 

    Um dos Mortos-de-Coimbra:

    António Galeão, morador ao Beco das Cruzes quando ainda era novo o Teatro Sousa Bastos, ali à vista. Galeão, velho Galeão, bondoso António Galeão! Sempre metido na sua lura de sapateiro, caverna térrea onde todo o dia oficiava solas, colas, pregos, sebos, graxas, couros, napas. Olhos de azul-aguado, perpétua ponta de cigarro ao canto esquerdo da boca, sempre a mesma jaqueta azul-trovoada, mãos de águia, pobre como os moribundos. Gostava da sua aguardente com uma gota de café. Amigo de pombas & de crianças na mesma proporção. Muita gente o acompanhou à Conchada. A mulher não foi por estar entrevada a ponto de já nem as orelhas mexer.

    Outro Deles:
    
Belarmino Capela, guardião da noite, adorador da Rainha Santa & do União de Coimbra, nascido precisamente na gloriosa Arregaça. Ao sol como à chuva, invicto monárquico, sofredor de revolta por lhe terem matado o Rei como a nem um cão raivoso se faz, Rei & Príncipe-Real aliás, também o Real Menino foi chacinado pelos barbudos malditos da Carbonária. Manso marialva, chorava quando lhe contavam a tourada no Viso da Figueira da Foz, e ele tão pobre que nunca pôde ir ver uma, ninguém se lembrou de levá-lo a essa faina, essa chacina dita honrosa, nobiliárquica até. Belarmino recolheu ao asilo da Misericórdia, lá se apagou.

    Uma Outra:

    Guida Botelha, esfarrapada, andrajosa, gaiteira, louca como os tornados que desenraízam as casas. Toda a gente sabia que enlouquecera por ter perdido, na mesma noite, os dois filhos. Embarcados na Mercante, morreram ao largo de Vila do Conde, eles dois mais sete, parece que de um incêndio no porão, estranha coisa, poder no mar alguma coisa arder – e tanto. Nunca mais afinou pelo diapasão dos outros. Vivia de esmolas, claro. O senhorio despejou-a. Acolhia-se a buracos que quadrúpedes enjeitariam. Lavava-se no rio – mas depois vestia a mesma roupa, o cheiro dela ia de Santa Clara a Lordemão. Deram com ela morta no Penedo – não sei se no da Saudade, se no da Meditação.

    E

    José António Conceição. Guilherme Pais. João Dias. Mila Costa. António Pratas. Fernando Pratas. Victor Santos. Rosa Gomes. Jorge Rocha. António Santos. Augusto Gonçalves. Cristina Velindro. José Martins. Luís Miranda. José Dias. Maria da Luz.

    

    Agora aquieto-me, não devo prosseguir. Nem posso. 







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Canzoada Assaltante