© DA. 10 de Fevereiro de 2019 – 15h 14m
XIII
No Inverno de 1987, jantei ao balcão de uma churrasqueira que atendia desavindos da vida como então eu começava a ser também. Usei esse sítio, cerca de duas décadas depois, no único romance que publiquei até hoje. Há elementos dessa noite que sobrevivem na lembrança.
O mulato grande de olhar fixo num ponto imóvel do seu cosmos interior.
A consumidora de pós maus que mal se sustinha de pé ante o espelho do lavatório.
O assador de frangos, de avental amarelo com dedadas de carvão, fumando com a mão esquerda & rodando o espeto com a outra.
O frio lá fora, omnipresente como um remorso.
Enumerando, revivo um pouco desse serão devindo atemporal & a-histórico. Não me move nem comove qualquer saudosismo. Jantei ali, era Inverno, já pouco importa que a minha idade fosse ainda tão escassa. Lembro-me de ter comido frango como quase toda a gente. Sei que não choveu. O frio era seco. Lá dentro, éramos náufragos sem esperança nem desespero. Poderíamos ser outros que ninguém daria por havermos sido trocados, outros de outros vós em nosso lugar, como decerto houvéramos sido na véspera, como de facto seríamos na noite seguinte. A casa não tinha televisor. Havia um sítio oculto que esfiava em surdina uma presença incorpórea. Duas pessoas serviam ao balcão em U. O homem era maneirinho, a rapariga era robusta. Era barata, a comida – e o vinho, sofrível. Já tudo se consumiu & se consumou.
XIV
Casas de madeira abeiram o lago desde os anos 30 do século transacto. Gerações ali se criaram & dali debandaram. Das oito originais, só duas albergam ainda alguém. A azul, um polícia-militar na reforma, a mulher dele & uma sobrinha dela, órfã de pai & mãe. A castanha, dois irmãos solteirões que vivem de expedientes & carocas. As restantes seis decompõem-se sem pressa nem vagar. A zona é protegida. Quando os actuais residentes passarem de vivos a mortos, a ordem é de arrasar tudo, devolver à Natura o que nunca deixou de pertencer-lhe. Há leis acertadas, venha de lá quem vier.
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