05/01/2021

VinteVinte - 177 (VI & VII para acabar)


Atreito a belos gestos, o Adriças 
trouxe à paródia vinho do maduro. 



VI


Débora Fernandes passa a ferro para fora. 
Sempre é um trabalho limpo, na verdade. 
Já lavou escadas, mas era então nova. 
Nova já não é, tem os sessenta à porta. 
Tem freguesas fixas, pagam ao contado. 
Os tostões dão para uma decência frugal. 
O mesmo é dizer que para uma frugalidade decente. 
Já foi mais a excursões, não tanto agora. 
Chegou a conhecer Badajoz, comprou caramelos. 
O Fernando Carteiro, reformado & viúvo, chamou-a. 
Fernando é um homem decente & sem meias-palavras. 
Propôs-lhe juntarem-se, partilharem a velhice. 
Ela ficou de pensar no assunto. 
Até hoje, não respondeu ao senhor. 

Fernando Alves, carteiro toda a vida adulta. 
Razoavelmente reformado, sem aflições. 
Passou as-do-Algarve com a doença da mulher. 
Saudade Alves era neurodegenerativa. 
Definhou sem pressa, um soneto de anos demorou a finar-se. 
Não merecia, nenhum dos esposos, tal provação. 
Ele assistiu-a sempre – e sempre na mor dignidade. 
O enterro foi a uma segunda-feira vencida pela chuva. 
O padre, alérgico a água, mais resmungou do que sacramentou. 
Foi tudo adequadamente triste. 
Germana, filha do casal, atrasou-se. 
Apareceu afinal loira, esfregada a água-oxigenada. 
Trazia a tiracolo o terceiro marido. 
Fernando Alves, a pensar em Débora, suspirou. 

VII 

Atreito a belos gestos, o Adriças 
trouxe à paródia vinho do maduro. 
Nabos, nabiças & outras hortaliças 
trouxe consigo o bom do Zé Seguro. 
Desta vez não se esqueceu das chouriças 
o João, coração mole & olhar duro. 

Sob o alpendre era já posta a mesa. 
Serviu-nos branco frio o bom anfitrião. 
Às fatias eram presunto & melão. 
O instante vinha dotado de pureza. 
Queijo de cabra d’áspera natureza. 
E à cautela ’ind’outro garrafão. 

Do rio o peixinho refritado, 
do mar a gamba gorda d’insolente. 
Broa d’um amarelo refulgente 
co’ a banha do toucinho mesm’ ao lado. 
Devorar não precisa de recado, 
moderado foi o beber da gente. 

Fora, a noite vinha aos passinhos mansos. 
Ao canto o senhorio riscou lume. 
Veio então o filho dos manipansos: 
leitão dourado lindo, que é costume 
paparmos sempre que vimos a Anços 
& q’até à Mafalda faz ciúme. 

À hora do café com aguardente 
(de cafeteira & de alambique), 
veio bolo-de-passas muito chique 
& leite-creme p’r’adoçar o dente. 
Falou-se da guerra em Moçambique 
na qual cada um de nós foi servente. 




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Canzoada Assaltante