192.
DE CERTA HARMONIA
Coimbra, domingo, 15 de Novembro de 2020
I
Gota a gota a consumação sem fadiga se faz perene
O mundo de Platão deste é siamês, o mesmo (nada) vale
A entropia indifere de si mesma infrene
É como é, concorde-se ou não, é igual.
Céu nublado, campânula abafadiça, cerração
Ao longe arvoredos prosperam sem gente
Entre o que somos & o que estamos não
Há-de afinal dar-se assunto urgente.
Domingo mais que de costume pla(i)no deserto
Apelam ao civismo, ao não-turismo, à contenção
À uma da tarde, tudo se fecha que estava aberto
Levam vinho p’ra casa com uma sacada de pão.
Fora de nós a terra lavra pedra, transita rios
Quer lá saber do Natal ou carnavais!
Não alinha o cosmos em só humanos desvarios
Se calhar também nós somos siderais.
II
Com água fervente, cevada & aveia. Bebida de recolhimento, no íntimo da casa, estabelecida já a noite em meio-mundo. Bulício nenhum. Aceitação & demora. Repensa-se alguns lances pretéritos, extraindo o suco de ensinamento possível. Pressa por nada. A meio do penúltimo mês deste ano-abortado, o mais assisado continua sendo não engordar quaisquer expectativas. Dúvida nenhuma quanto a isto. A irrelevância pertence à borda do prato, primeiro, ao balde depois, depois ao contentor que os serviços municipais dispõem pelas ruas ora deser(ad)as.
Da vidraça para o mundo-local, o olhar nem procura nem descobre – tudo é isto & aquilo mesmo. As vias-rodovias, sem viaturas quase, serpenteiam em vão pela negritude acinzentada da hora. Os semáforos piscam por ninguém. Funcionam as luzes públicas, iluminando o vazio já convencional da crise sanitária.
Há em tudo isto algo humanamente revelador. Por força de lei, somos aprisionados para nosso próprio bem. É o que se alega. A natureza não-humana, todavia, parece agradecer. Aproxima-se o tempo de devolver aos não-humanos aquilo que sempre lhes pertenceu por mérito do bom-uso que lhe dão? Não sei. Não sou de apocalipses pirosos, messiânicos, charlatão-cristãos etc. No contundente (e magnificamente escrito) Epicédio à Morte de Manuel Maria Barbosa du Bocage, José Agostinho de Macedo assim estatúi:
“Tudo corre a seu fim, corre a seu nada.”
Pois corre. E nem pressa leva, nem lentidão sofre.
Tomada a aveia-cevada, o serão livresco apetece. Funciona bem a lâmpada à cabeceira, a máquina dá Mussorgsky após Mahler. Pode o sono acontecer quando a ele se dispuser o corpo já não novo. Há infinitude de vias mentais – mas as favoritas são, naturalmente, stock limitado. Pensado de repente: 20 de Maio de 1973 (domingo) foi um bom dia. Casaram-se Alberto & Fernanda. Fui um dos convidados, por inerência. Fomos à festa Pai, Mãe, Zé Daniel, Carmita & eu. Boa embaixada. Há fotografias residuando esse aparato da simples gente. Consegui reproduções de três delas.
O não-sentido é definitivo. A esta hora, este instante é aqui só – e a sós. Em outras casas de outra gente, talvez alguém tome a sua chávena de cevad’aveia com água bem fervida. É incomunicável. Terêncio, Ovídio, Horácio, Catulo – como Macedo, Bocage, Garção, Lobo: vias por que pouquíssimas viaturas. Etc.
III
Ainda bem que não cedeste à suposta normalidade.
Nem louros nem ouros nem agouros – danem-se todos.
Os erros, é de natureza serem a rodos.
Têm direito-de-cidade.
Anos que pareceram longos, décadas de facto breves:
tudo vai do sujeito, não da dita objectividade.
Esta devém da suposta & sobredita normalidade.
Outra coisa é o transcurso de nuvens & aves.
IV
Certa harmonia entre o que se é & a realidade natural.
Ver como o pastor age no tempo da pastorícia.
Musgo, humidade, figueira atirando figos, terra atirando figueiras.
Cavalo dessedentando-se no charco da chuva de ontem.
E vivência dos momentos escritos través o idioma.
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