02/01/2021

VinteVinte - 174 (I-IV)

© Shoeiga 

 


174.

 

A MINHA É ESTA

& ELA MOVE-SE

 

Coimbra, segunda-feira, 26 de Outubro de 2020

Coimbra, terça-feira, 27 de Outubro de 2020

(a partir da 3.ª estrofe da parte VIII)



I

Marília:

Andam por cá às cambalhotas com o orçamento-geral-do-estado.
Fazem eles bem – que eles é que o ganham, como diz o povoléu.
O dia é menos baço, o meio-dia nasce iluminado.
O Gato não usa roupa, formosamente de pêlo ao léu.

Cecília:

No televisor, um careca, especialista de algo comezinho,
tergiversa periquitamente sobre urgências indeclináveis.
Tem caspa nas sobrancelhas e até no bigodinho.
Orgulho da família, está na TV por instantes inolvidáveis.

Ercília:

Que me dizes do orçamento? E do especialista careca?
Quê? Não ligas pêva? Estás-te nas maiores baldas?
Imagina-me o careca aquando usava fraldas:
será que se augurava já tal erudito d’estaleca?

II

Galeria que sobrepassa os dias do silente quotidiano.
Refiro-me a nomes-obras que cessar não cessam.
À indiferente natura se re-uniram, nada lhes é dano.
Em as minhas horas ledoras todavia recomeçam.

Diz-se que neva já na serrana Estrela portuguesa.
Há anos fundos que a ela não subo a ser alto.
Nem quantos sei, muitos são pois com certeza.
Recordo extática comoção, muita beleza, sobressalto.

Adormeci ontem depois de folhear o Montaigne sensato.
Não chegou aos sessenta, no entanto ’inda é figura.
Tuteou leitura & escrita, assisado & cordato.
Deixou dessas obras tão mais fundas quão mais altura.

III

Ateneus d’antigamente ora há muito extintos,
morreram os fundadores, morreram os continuadores,
a própria cidade d’antanho é morta já,
é da natura do tempo não prantear o que for.

Recolho os derradeiros sinais dessa antiguidade,
mal me não faz, aqui uma lápide comemorativa,
ali um pórtico esgalhado, ratos & corujas,
passam os japoneses em rebanho panfotográfico. 

Pouquíssimo resta, em sobras, de tais obras.
Nova geração nova antiguidade se forjará.
A minha é esta.

Outra não ensejo.
Viro à esquerda, não, não era por aqui.
Não era nem a ser voltará.

    IV

    De ontem para hoje, mais 27 mortes atribuídas à pandemia em curso. E quase 2500 novos casos. No estrangeiro (a começar por Espanha), muito mais mortos, muitos mais casos. Estranha, inabitável idade esta. 





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