11/01/2021

VinteVinte - 186 (II, todo)




II


O velho homem ainda trabalha muito, agora em casa só. 
Dorme & come no piso térreo, trabalha na sobreloja. 
Ainda é firme o seu traço, voluntariosa a sua caligrafia. 
Está em presença de tudo o que perseguiu & persegue. 
A cintilação marinha, o bilhete autógrafo, o frasco com feijão, 
a Lua apanhada nua, a chávena meia, a camisa à escocesa: 
tudo lhe presta matéria & correlação, que ele retribui. 
Jamais desconheceu que é pela solidão que se lá vai. 
Se se lá chega, é outra questão – e bem diversa ela é. 
Foi rapaz, sim, cumpriu essa idade penitenciária. 

A maior probabilidade é a obra não sobreviver. 
Os herdeiros cuidam mais do que possa vender-se. 
É da natureza de quem herda o não valer uma merda. 
Desenhos, estatuetas, poemas, pincéis & lápis? 
Giros, engraçadas, ilegíveis, velhos, no côto. 
O velho sabe, não se perturba, trabalha mais. 
Não alinha em carnavais, natais, esponsais de família. 
O sangue genealógico é tão aguadilha como o de estranhos. 
A caridade é calculismo visando celestes alvíssaras. 
Não tem telefone, não telefona, tem uma cadela a quem falar. 

Dá voltas mais lentas mas dá-as como sempre deu. 
Dando-as, vai filtrando sinais humanos & índices naturais: 
a velhota limpando os óculos, a nuvem prenhe de pureza alta. 
Um relvado de praceta medido a passos de pássaros. 
Para tudo, traço firme & voluntariosa caligrafia. 
Conversar na extrema do balcão com concidadãos de afim idade. 
Tomar o refresco em esplanada de bairro quieto. 
Tratar das oficialidades civis, não retrasar obrigações. 
Levar a cadela à clínica, fazê-la sentir solidariedade. 
Falar com ela em casa, à hora da lareira & do chá. 




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Canzoada Assaltante