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18 de Janeiro de 2021 . 18h19m44s
VII
Passa-se a zona infecta em discreto andamento. Flecte-se à esquerda, é logo a descer. Coisa de mil metros, nas calmas. Há mata de boa qualidade de ambos os lados da descida. Mais abaixo, começam os prédios-dormitórios da classe-média-medíocre. O bairro à vista não tem trinta anos. Dispõe de farmácia, minimercado, churrasqueira (só para-fora), padaria-pastelaria, oficin’auto, postos de primeiros-socorros, taberna antiga que ainda não desistiu. Não é mau sítio, é só de ordinária banalidade. Seguindo a serpente de alcatrão, arriba-se à rotunda nova. Gare ferroviária, viaduto, estacionamento tarifado, paragem-bus, tudo a poente. A nascente, fileira de restaurantes, barbeiro (com raposa empalhada à porta), oficina de reparação de bi & motociclos, garagem que serve de capela a uma seita evangélica de sotaque carioca % Café-Bar Vesúvio, clássico poiso de reformados, desempregados-crónicos, advogados manhosos (passai a redundância) & poetas impublicáveis. Repouse-se aqui um pouco, por favor.
Está-se aqui bem. Estes são dias mais depressa reféns do anoitecimento. Novembro, pá. Nem culpa nem pecado, nem remorsos nem chatices. Acabou arrefecendo mais do que o previsto, fuma-se mais depressa na esplanada vazia, volta-se para dentro sem contrariedade. Futebol no televisor, claro – é non-stop, hoje em dia, de manhã à noite, nem o Salazar sonharia tão fácil alienação da carneirada. A mesa mais estreme, sulcada de reformados tintófilos. Às restantes, habitués plácidos, sonolentos alguns. Ibraim, o moçambicano por aqui radicado há para cima de três décadas, vai raspadinhando furiosamente. Cardoso & Sílvio mandam vir bifanas, que aqui são generosas. A empregada é roliça, baixinha, desempoeirada. Chama-se Lúcia de Fátima, mas nunca viu milagre de monta. Carregado de luto, Renato resolve as palavras-cruzadas do jornal. Sinaliza de cabeça sem abrir a boca, Lúcia traz-lhe de imediato a taça plena de branco. É reconfortante sentir que tudo por aqui acontece pela enésima vez. O sobressalto mais recente foi o óbito da mulher de Renato. Levou-a o vírus da moda, foi em Abril. Toda a gente diz que era muito boa senhora, que não merecia, mas que Deus é assim, tanto cria os chineses como a insondáveis desígnios, isto é tudo uma passagem, ninguém cá fica.
Ninguém cá fica – até porque o Vesúvio já não está aberto toda a noite como antigamente soía, deixou de valer a pena desde que fizeram a auto-estrada. Alguém paga a última rodada, passam cinco da meia-noite, debandada geral. A maior parte dispersa-se a pé, moram perto. Dois, cada um em seu calhambeque. O poeta impublicável segue dentro de momentos.
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