© DA. 13 de Novembro de 2020 – 13h31m47s
172.
CABRIOLICES AO TOSTÃO
Coimbra, sábado, 24
de Outubro de 2020
II
Fez-se entretanto noite.
Dizem que chove amanhã.
Sei o que noite significa.
Não digo o mesmo do que vem.
Para muitos vem.
Para muitos já não.
Para muitos ainda não.
Estou para ver se.
Aproveitei pouco do dia.
Confinei-me em sesta.
Não voltearei tão depressa.
O que se perde, tenho.
O tempo se tem que se perde.
Ganhá-lo é passada ilusão.
Deixa-se talvez um livro.
Leva-se nada, sequer leitura.
Senhora com cadelita melada.
Limoeiro vergastado a vento.
Casal atravessando a estrada.
Fumo débil de casario anil.
Outra senhora mas sem par.
Nenhuma criança à solta.
Chamam a isto mau-tempo.
Eu gosto, legitima a tristura.
Gentil cadelita cor-de-mel.
Gentil senhora a tiro dela.
A tudo o olhar volve proscénio.
Assim seja enquanto se vê.
Ponte sobre afluente frio.
Semáforos piscando os olhos.
Só que hoje não caminhei.
Não fui ao velho mundo.
Fui, velho, ao mundo.
Tornei logo a casa.
Assisada decisão tomei.
Aqui a história é paginada.
Fora, a história é nada.
Como se de novo astr’uterino
ou (mentira) menino.
Raia alguma encerrada.
Anos estragados? Contei.
Por estragar? Quantos houver.
A idade vem macerando violetas.
Perfumam acordados sonhos.
Preciosa obr’antiga à mão.
O chá-bolachas, também.
Espreito entre cortinados.
Sou o mocho domesticado.
(...)
D’antigamente no adro éramos.
Não haviam ’inda feito o muro.
Jogávamos o dia todo.
Ainda o fazemos, mas afora.
Ora, fora jogamos o dia.
É natural da passagem.
Cedemos o lugar aos venientes.
Alguém no-lo cedeu antes.
Às seis matinais é bom ler.
Ilude tesouro auferido.
Ferve-se leite, torra-se pão.
Descem as primas aves.
Sim, gostaria de chuva.
Não, não tenho lareira.
Só escrevendo-a a tenho.
Ao lume da palavra, sim.
Damas, Hilário, Marinho, Dinis.
Matine morreu há dias.
Guerreiro, Pavão, Castro, Juvenal.
Eliseu, Móia, Horácio, Vaqueiro.
Soeiro, Tojal, Redol, Aquilino.
Duração do que (me) deram.
O puto a dizer “por obséquio”.
A pele para fazer o tambor.
Como presenças firmes.
Tal companhia leal.
À mão já semeada.
A partilhar a sós.
Dizem plúvia amanhã.
Outubro tem sido outonal.
Receei que fosse cálido.
Por enquanto não.
Mircea Eliade lido na F.ª Foz.
Carlos Fuentes, em Peniche.
Nicolas Freeling, no Lorvão.
Malcolm Lowry, no Sobral C.
Heteronímia desse ledor.
Quem ’inda vivia.
Quem já não.
Vento vergastand’ o limoeiro.
Saber calcificar a dor.
Endurecer de ouvido.
Idem de coração.
Bom projecto, julgo.
Principescamente só.
Sozinhamente infante.
Ante a cinza & ante o pó.
E mesa no restaurante.
Dormir sem sonhar, doçura.
Ser capaz de palavras.
Antecipar o golpe, puni-lo.
Sim à rosa, não ao rosário.
A sós sem SOS.
Farol em promontório.
Ir não-acabando.
Dar pausa ao mata-dor.
Colorista de retratos.
Sapateiro estabelecido.
Mui cortês vizinho.
Fumador de mata-ratos.
Motorista camarário.
Especialidade trolley-bus.
Esqueleto-no-armário.
E ferida feia com pus.
Onde me disseram macieza.
Onde respondi & a quem.
Voltas que não voltam.
E o que mundo não re-dá.
Circo-família pobríssimo.
A ferro no meu coração.
Anos 70/XX, Pedrulha.
Cabriolices ao tostão.
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