02/01/2021

VinteVinte - 174 - (VIII & IX)


© Eugène Atget  - Paris, 1890-1920 

VIII


Alfredo sai cedo de casa com a mulher, Eunice. 
Tomam café juntos no estabelecimento dos Cardos. 
Separam-se depois, osculando-se ao de leve. 
Ele segue a pé pela quelha, ela espera o autocarro. 
Em dez minutos, Alfredo arriba à cimenteira. 
Ela segue na linha 2 até ao Jardim do Príncipe. 
Não têm filhos (um dos dois é estéril). 
Nunca pensaram adoptar. 
Conciliam a modéstia material com a nenhuma ganância. 
Têm um canário engaiolado alto por causa do gato. 

Um dos arrumos construídos em linha serve de casa. 
Atrás da casa de Eunice & Alfredo, a fila de arrumos. 
O da extrema-norte, por ter janela, é habitável. 
O casal cedeu-o a um sobrinho de Eunice, Álvaro. 
O rapaz é solteiro, honesto, limpo, algo monástico. 
Estuda à noite no curso comercial da Filinto Elísio. 
Para comer, vestir & calçar, faz carocas de guarda-livros. 
Ajuda o pessoal da rua com a papelada das Finanças. 
Só com o diploma pode chegar a ganhar mais. 
Projecta fazê-lo por conta própria – ser, como se diz, alguém. 

Letícia já não sai de casa quase, é raro vê-la ao ar-livre. 
Enviuvou cedo, foi-se-lhe entrevando a vontade de viver. 
Álvaro faz-lhe & leva-lhe as compras mínimas. 
À janela vem, vê-se-lhe o rosto branco como se irmão da neve. 
Dizem-lhe adeus, a que ela reage com a estrela-da-mão. 
Dizem que foi muito bela, que poderia ter-se casado rica. 
Levou-a Rolando ao altar, coitado, viveu pouco. 
Também estes não tiveram filhos, não calhou. 
Uma pena que tenho, é não saber escrever versos que ela lesse. 
Que ela lesse & quisesse por serem semelhantes a Rolando. 

Na Petisqueira do Lorde, achega-se-me um patusco. 
Interpela-me no sentido de apurar se sim ou não minto. 
Se minto Alfredo & Eunice & Álvaro & Letícia. 
E se me minto a mim mesmo sem receio de polícia. 
Respondo-lhe que sim, às vezes, mas que no entanto. 
No-entanto-o-quê? – insiste ele. 
No-entanto-ela-move-se – responde por mim Galileo. 
Ele desanda algo desconsolado, decerto confundido. 
E no entanto ela move-se deveras. 
Ela abre em tule de janela a estrela-da-mão & move-a-nos. 

    IX 

    O dia foi ainda mais fósforo ao vento do que de costume. Não voltará. No País, mais 28 mortos-covídicos nas últimas 24 horas, tirando de contagens os óbitos devidos a outras razões. (Exemplo: no concelho de Odemira, estrada municipal 1123, Almograve, morreu um rapaz de 27 anos em consequência de embate frontal de dois ligeiros.) Os nascimentos são menos susceptíveis de notícia. Também as notícias parecem fósforos riscados ao vento. Depois, com a mudança da hora, a noite semelha mais poderosa ser. Lá fora, manifestações violentas contra as restrições sanitárias. Já há recolher-obrigatório, uso constante da mascarilha, encerramento precoce do comércio, o diabo. Este Ano-VinteVinte ficará nos anais históricos com a esquisita tarja. E eu que queria escrever um livro-cidade… Acabo confinando-me ao presente livro-quarto, livro-cozinha, livro-marquise. Seja, enfim. Alguém há-de escapar.



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Canzoada Assaltante