RAMALHO ORTIGÃO
(1836 - 1915)
177.
SERVENTE CADA UM DE NÓS
Coimbra, sexta-feira, 30 de
Outubro de 2020
I
Em vão-de-escada, a bijuteria mínima. Atende uma rapariga precocemente velha, de imediato semblante macerado de toda a fadiga deste mundo – que o próximo não repousará. Compro-lhe um adorno: fio de prata com miniatura de elefante. É para oferta aniversária a uma senhora que conheci muito antes de ir para a tropa – ir eu para a tropa, que naquele tempo não havia mulherio militar. O fio é barato mas bonito, de lavrada finura. O elefante é catita, ternurento, patusco, levíssimo. Saio dali, marcho em binário até ao escritório do doutor Mello Madrecravo, advogado de renome estabelecido. Combinamos almoçar no Terreiro da Erva às duas da tarde, antes disso ele não pode. Saio, recebo a caminho um telefonema sem urgência nem grande préstimo. Abanco na Rosalinda das Bifanas, louçã camponesa que faz bom negócio nos comes há mais de uma década. Como só volto a tascar às duas e ainda faltam quase quatro horas, decido-me por uma sandes de iscas regada a martelo de puro carrascão. Deixo-me estar abademente. Não tomo ali café. Vou ao Sofia. Porto comigo um volume de oaristos, camafeus romanos & outros átomos do simbolismo à la lusitana. Está uma bonita manhã escorrida da infanda mercê de Deus. Eu existo, logo faço por pensar. Ou por pensar mais logo. Encravou-se-me em uma anfractuosidade um fiapo de isca, que tento desalojar sorvendo sem maleducadamente silvar. Consigo, para meu alívio. Neste mesmo Café Sofia tenho lido gemas & pérolas. Também já aqui escrevi algumas amnésias. Saio. Confiro no bolso do lado-coração o estojozinho do elefante argênteo. Vou ao Jardim da Manga migar pão para o pombal ali residente. Sou feliz como os demais tristes. Não faço nem procuro diferença. Palavra-da-salvação.
II
Revivo anos deste mui diversos.
Cidade do Porto com três anos de margem: em 1836, ali nasce Ramalho Ortigão; em 1839, idem idem Júlio Diniz.
Duas figuras são que ainda contam, marcam ainda.
O primeiro – foi vagamente professor.
O segundo – foi vagamente médico.
Nem um nem outro ficaram por tais ofícios.
Conta & marca o que publicaram.
Há cerca de 25 anos, estive ante o jazigo de Ramalho & sua mulher.
Cemitério do Alto de S. João, Lisboa.
Visitei também, muitos anos depois, a Casa-Museu de Júlio Diniz em Ovar.
Peregrinas experiências, que retenho sem alvoroço nem decepção.
A bondade de Diniz, a acutilância de Ramalho – funcionam muito bem, é aprazível reler ambos.
Também Victor Hugo apraz, devidamente doseado todavia.
O século XIX é atraente, tenho-lhe dado horas póstumas em razoável ror.
Ramalho ficcionou muito pouco, mas cronicou assaz.
Diniz ficcionou quanto pôde – e não pôde mais por ter morrido tão moço.
Ambos criaram & legaram Obra.
Revivê-los ajunta ao meu dia certa lareira acesa, por assim dizer.
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