13/01/2021

VinteVinte - 188 (I-IV)


a ominosa gruta Todoroki chamada


188.

 

POR TODOROKI 

& ARREDORES

 

Coimbra, quarta-feira, 11 de Novembro de 2020

 

    I 

    Em Barcelos, fábrica de acrílicos arde por completo. Cinquenta e quatro trabalhadores à bica. Se quereis poesia, aí tendes versos de triste epopeia. 
    Além, gurus instigam seitas a apocalipses rasteiros, espiritualidades comezinhas, esquisitices que misturam ovnis de série-B com farrapos bíblicos de interpretação avulsa à-vontade-do-freguês. 
    Entre os postos de trabalho queimados em Barcelos e este psicadelismo rasca de charlatães hippy-terráqueos, nem é preciso esfregar o olho ao Diabo. 

    II 

    Fora de comezinhos vilipêndios 
    Aquém em mente muito predisposta 
    Pronto sempre a regurgitar compêndios 
    Coimbrinhamente como a gente gosta 

    Não há estelares famílias, há só ninguém 
    Tanto faz à montanha sejas ou não 
    Desovado cada um de sua mãe 
    Livre é morrer sem ser à condição 

    Tempo de praga que hoje vivemos 
    Mais misticismo tão de pacotilha 
    Mirramos muito mais do que crescemos 
    O vulcão faz & desfaz a mesma ilha 

    Não sobrevive alma sem feijoada 
    A mármore se entala o defunto 
    Marcianos deram de debandada 
    Nem pagaram a sandes de presunto. 

    III 

    Um dos Antónios desta Cidade frequenta, cada quinze dias, a consulta de recuperação pós-toxicodependência. Anda há quatro anos nesta rotina. Diz-me ele que se sente bem, que o mais difícil já deve ter passado. Agrada-me conversar com ele, embora poucas vezes tal suceda. Ele frequenta mais a Praça da República, mais pela tardinha, que é quando despega do trabalho, emprego que nunca lhe perguntei qual seja. Hoje ri-se das parlapatices xamã-voodoos-haiti-jamaicanas com que os saturou os miolos já de si saturados de pó-cavalar. É como se tivesse despertado sem pré-aviso de uma bebedeira do entendimento. Ao contrário de mim, não guarda rancor ao passado. Mandou apagar as tatuagens com que sujara a pele e que tão à-moda são agora entre a gente estúpida. Tem algures um filho-rapaz já na casa dos trinta, vive nesse algures com a mãe. Este António não sabe dizer-me se a mãe do filho largou ou não as duras. Não sabe porque nem ela nem o filho respondem a contactos de qualquer espécie. Ele encolhe os ombros, noto certo ricto amargo – mas resignado – na comissura labial. Despedimo-nos sempre o mais cortesmente. Desconhecemos se nos reveremos ou não. A última vez foi em Janeiro, antes da folia pandémica corrente. 

    IV 

    Maio de 1945 foi pavoroso. Okinawa que o diga – que o dissera a então adolescente Tobaru Kiku, com 16 anos à data. Muito pode o mal por modos inerente à condição humana. Não há século imune a essa letal poesia, digamo-lo assim. Com 13 anos, Zukeran Choho fugiu como pôde das bombas de estilhaços made-in-USA. Chegou a bem velho – muitos familiares dele não. A vida é ainda mais colateral em a guerra. Não há, sobre tal, que pintar a manta. Restam grutas de abrigo & emboscada. Mentalidade suicidária, a honra nipónica. Yahara Hiromichi, coronel, sobreviveu porém à batalha daquela ilha, bastião derradeiro do Império & de Hirohito. Também o soldado Morii Naojiro chegou ao limiar centenário, tendo combatido em modo-guerrilha a partir dos esconderijos. Ansiedade cega de toupeira. Tudo é hoje pacificamente visível no sentido cama-televisor, sintonizado o aparelho no canal NHK World / Japan, o mesmo que dá os torneios de sumo do mais alto escalão profissional. Espécie de anestesia ridente, digo. Adentra-se agora, ¾-de-século depois, a ominosa gruta Todoroki chamada. Sobrepovoada de soldados fanatizados & de apavorados civis, é hoje boa para turismo historiográfico. Como ficção bem imaginada mais do que enquanto candente tragédia afinal cíclica. 




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Canzoada Assaltante