28/01/2021

VinteVinte - 215 (VII + Post-Scriptum) - Conclusão da publicação (salteada, escolhida, não-integral) dos cadernos relativos ao esquisito ano 2020

    
Carlos do Carmo
(1939-2021-ad-infinitum)



    VII

    Faltam dezassete minutos para o instante-zero de 2021. Estão desertas ruas & praças por que habitualmente exultavam folguedos as carneiradas festivas (*). Ainda bem. Adeus.

(*) “Pois o instinto de imitação e a falta de coragem governam as cidades, como as multidões.” (Proust, claro.)



    Post-Scriptum de sexta-feira, 1 de Janeiro de 2021

    Na manhã de 1 de Janeiro de 2021, morre Carlos do Carmo. Era ele o vero Homem na Cidade. Formosa voz, belo cantor. Mau sinal, péssimo exórdio de Ano Novo.


27/01/2021

VinteVinte - 215 (V)

 

    V

    Minutos depois das dezanove, flanelei o estômago, forrando-o de chocolate-negro soluto em leite-inteiro com uma noz-de-manteiga. Um torpor de abade alfim saciado tomou-me todo, dos cavernames gástricos às pontas-penates & ao oleaginoso cocuruto. Escutara antes o Pesadelo de um Contrabaixista, do virtuoso (e falecido) Ludwig Streicher, em gravação de 1990.

26/01/2021

VinteVinte - 215 (IV)


Deus não há, nunca houve, haverá jamais – mas Bach sim.



IV


Bach Organista incensa de som puro este Quarto-Casa.
Deus não há, nunca houve, haverá jamais – mas Bach sim.
Há poder nesta organização sonora, neste temp(l)o audível.
Medo nenhum, força delicada toda, assim é o que há.

Tenho passado a tarde aqui em Balbec com Marcel.
Já antes Rodrigo encordoou Aranjuez.
Caldo novo (porco, feijão, batata, cenoura, cebola, azeite) ferve.
Roupa-de-casa, lavada, muito enxuta, forra a corporação.

Não nos trará malfazeja sina sonhar alguma lotaria.
Melhor há-de ser certa propensão à indiferença.
E melhor a inert’inerme indiferença do que o áspero desprezo.
O crematório d’ali-Taveiro a tudo aplaina & a todos igual(h)a.

Há sim sossego em esta remediada amargura.
É de condição certa inalienável tristura ambulatória.
Mas a palavra-justa impera em espera, esperança não.
João-Sebastião, mestre-da-fuga, não foge animal, perdão, afinal.


25/01/2021

VinteVinte - 215 (III)




    (III)

    (Sei que mistificação & mitificação concorrem parelhamente à memória tanto quanto à projecção. 
    É em afinal-sossego que despeço o Ano. Aqui-em-o-tugúrio vai sendo menos precário pactuar para dentro. Nem toda a pessoa que amo me não estende mão de fala ou rost’ouvinte.) 


24/01/2021

VinteVinte - 215 - II

 

II


Às 15h45m, enegrece o azul celeste, depressa preto de frio.
Eu temera que inverno não dera o ano acabando-se.
A hora é todavia deveras invernal, pasmam vãos os campos.
Amanhã, Ano-Novo, é de ilusório recomeço labor-pessoal.
Como será, na hora se verá.

VinteVinte - 215 (última entrada do caderno-diário: I, incompleto)

 

© DA. 29 de Dezembro de 2020 - 18h13m21s 


215.

 

ADEUS

 

Coimbra, quinta, 31 de Dezembro de 2020

 


    I

    E, de pronto, tomba de madurez já pútrida este ano afinal mau para tanta gente desse tanto mundo.
    Trinta-&-Um-de-Dezembro do VinteVinte. O dia-terminal era antigamente para mim de um certo halo, uma incerta aura, algo como que protoporvir, por assim (espumosamente) dizer. Precedia a vaga pagã religiosidade de cada Primeiro-de-Janeiro. E parecia superior à concreta abstracção (algemas d’ar) da sucessão cronojuliogregoriana. É afinal um dia como os outros: pronto a ser proscrito se não, por escrito, algo dele se queira incorromper. 
    (...) Deixo da dúzia de meses cinco largos cadernos manuscritos través certa febre literatícia, assim a consideremos.
    Próximo ano, próximo livro: venham eles. Perístase próxima: venha ela.





23/01/2021

VinteVinte - 214 (apenas o I)


Marcel PROUST
(1871 - 1922)

 

214.

 

MAS SEI, CLARO QUE SEI

 Coimbra, domingo, 27 de Dezembro de 2020 (I) 



    I 

    Mas algumas vezes o futuro habita em nós sem que o saibamos, e as nossas palavras que julgam mentir delineiam uma realidade próxima.” 

    Pois é, retomei a releitura em profundidade da divina Recherche do divino Proust. A citação supra é do quarto volume (ed. Livros do Brasil, s/d, tradução de Mário Quintana) – Sodoma e Gomorra. Volta a siderar-me essa escrita incomparável. 

22/01/2021

VinteVinte - 213


© Daniel dos Santos Abrunheiro (1917-1994)


213.

 

GRACIOSO & ATIRADO

 

Coimbra, sábado, 26 de Dezembro de 2020


    (I)

    (Decidi só no próximo ano fazer derivação escrita da figura de Augusto Fillipe Simões, o catedrático-suicida da nossa Universidade. Também em linha por enquanto abstracta me vêm fulgindo ângulos do a-escrever-em-2021. Se eu lá chegar vivo, id est.) 

II

Leite solidificado em mármore, ou carne de senhora alva:
visão no sábado cuja manhã entra em crepúsculo. 
É perto da porta da mercearia, subindo-se o bairro.
Há muito aqui não mora, tal fresca aparição.

Vem de azul-forte estrelado a espasmos amarelos;
sapatos rasos de pelica oblíqua, castanhos;
casaqueta creme de sólida gola redonda;
carteira de marca, qual não sei, cara decerto.

E eu, que aproveito a máscara para esconder a falta de dentes,
miro (mas sem pasmar, que anoso sou já) a franca beleza
desta burguesa sem bibliografia
que vale o dia.

(III)

(E se senhora branquíssima alguma houver vista sido?
E se a recorrente falsidade da horaciana-arte a mi/s/tificou?
A quem vejo? Ou dou a ver? Ou quem não é? E se não sou?)

IV

Parece que a Millet não gosta de Magritte.
(Digo a, referindo-me a ela, mas d/e, referindo-me ao Artista.)
(Sei bem o que & o como digo.)

V

As aves habituaram-se a receber maná meu, gracioso & atirado.
Temos mantido esse uso, intervalo do que escrevivo.
Sou de minhas fidelidades mesmo volitivo cativo.
Nada me tira – ou diz mal – de tocar o fado.

Não me parece a sério, a senhora que hoje (não) m’apareceu.
E eu aqui de azinheira-portátil à cata de epifanias!
Restam-me, por sms-de-telelé, amigos, que guardo eu,
de mensagens outras, alternadas, de outros dias. 







VinteVinte - 212 (conclusão: IX & X)


Deveio ilegível o que os doidos escreveram nos muros.


IX


Silhueta de fábrica dominando o horizonte mediato. 
Extensões que já foram de culto agrícola, há anos que não já. 
Tal como a memória, também por aqui fumegam pântanos. 
De longe em longe, uma baiúca gasolineira com bufete. 
Os seres vão sendo substituídos por outros nomes-seres. 
Desde que o além permaneça terreno, tudo bem afinal. 

Dois homens trabalhando juntos com objectivos afins. 
Casados com irmãs, já há muito se tratam como manos. 
Seguem de carro rumo a uma obra em progresso. 
São eles quem dirige os trabalhos e paga aos operários. 
A empresa foi montada pelo sogro, já defunto. 
Os dois trabalhavam para ele desde rapazes. 

Ali são as ruínas do hospicio que aprisionava doidinhos. 
Muito poucos eram perigosos, o mais era de mansos alienados. 
Silveiras & festões de canas juncam os destroços. 
Enfermarias, copas, consultórios, algumas celas gradeadas. 
Lagartixas cavalgam seringas que a ferrugem fossilizou. 
Deveio ilegível o que os doidos escreveram nos muros. 

Acontece o mesmo a muita literatura. 

    

    Acontece abrir-se acesso ao interior de pensamento alheio. Quando tal, é momento de bom preço. A relação entre mentes compensa a natural ignorância. Em solidão, o labor é contínuo – em relação, é pontual. De qualquer modo, aí estamos ainda. 

    Este tem sido dia luminoso. Há azul, amarelo, branco, verde: na paleta que cada janela conforma. As distâncias, aquietadas de mudez, oferecem uma serenidade graciosa. Uma canção de 1971 soou no quarto. O cantor ainda é vivo neste 2020 esquisito que dá de si as últimas. 




VinteVinte - 212 (VI-VIII, incompleto este último romano)




    (VI)

    (Saí hoje, por uma hora, à Cidade. Não trago história. Fui depressa, não voltei devagar. Andava-me alhures a mente. Já nem estranho. A minha normalidade é interior. Estranho um pouco a externa – por vezes, nem sempre. Também não ia em demanda de enredo. Tinha uma coisa a fazer, acabei fazendo três. Estou abrigado. O ano vai morrendo. Fica como número-esquisito. Ano do vírus-chinoca. Não tarda, será tão-só um incêndio extinto perdido da vista ao longe. Os crematórios têm trabalhado muito & bem – bem & muito têm laborado as agências-funerárias. Há sempre quem ganhe com a perda alheia – é dos livros: e o meu é um deles, quase acabado agora.) 

    VII 

    Autenticidade, ilusão de ser-se único. Identidade própria versus (ou em versos) o resto do mundo – ido mundo, presente e/ou futuro mundos. Como se cada um fosse (mas não é) mais do que assentei naquela velha linha: 

    saco de vísceras apertado em cima por um olhar. 

    Não significa fatalismo. Não tem sequer de significar alguma/qualquer coisa. Futilidade. Vanidade. Vontade. Problema: não o de se ter mas o de se ser uma consciência. Como se o nosso sistema neuroeléctrico fosse o centro de um universo que nem centro tem. A treta da alma, a treta do deus-pai, a treta da mãe-virgem, tanta treta. 
    Quem pode, envelhece. Quem pode, aguenta-se. Quem quer, aprende. Não aprende tudo. Só alguma coisa. Tudo não é possível. Faúlha. Centelha. Faísca. Cisco. Chispa. Cada um é faúlha, centelha etc. Quem aprende, aceita isto. Se não aceitar, é o mesmo. 
    A carneirada bípede enche as lojas para imitar a carneirada bípede que já foi às lojas. Chamam-lhe Natal. O deus-menino sufocado pelo gordo-das-renas-lapónias. Comèdiazita cíclica. 
    Não temos de fazer da vida uma escola ao abandono. Pode ser-se decente sem qualquer custo-acrescentado. Não é obrigatório embarcar no lugar-comum-&-banal-&-venal. Cear a sós não é o pior que nos pode acontecer. Não ter que cear há-de ser bem pior, amigos. 

    (VIII) 

    (Noite vinda. O Emanuel nasce daqui a pouco – so they say. Consoada-confinada. (...) 




VinteVinte - 212 (I-V)


PAUL VALÉRY
(1871 - 1945)



212.

VARIAÇÃO & PERMANÊNCIA


Coimbra, sábado, 19 de Dezembro de 2020 (I)
Coimbra, domingo, 20 de Dezembro de 2020 (II) 
Coimbra, segunda-feira, 21 de Dezembro de 2020 (III-V) 
Coimbra, quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020 (VI)
Coimbra, quinta-feira, 24 de Dezembro de 2020 (VII-IX) 
Coimbra, sexta-feira, 25 de Dezembro de 2020 (X)

 

    I 

    Escreve Paul Valéry: 

    “Nous avons beau invoquer notre mémoire; elle nous donne bien plus de témoignages de notre variation que de notre permanence.” 

    Sábias palavras de um livro em muitos sentidos profético: Regards sur le Monde Actuel, obra originalmente publicada em 1945. Comprei o meu exemplar no dia em que a minha Mãe completou 59 anos de nascida: quinta-feira, 27 de Outubro de 1983. Foi na Livraria 115, às Escadas do Quebra-Costas. Preço pago: 260 escudos. Escrita, esta memória tem afinal tanto de variation (já não tenho Mãe viva, o dinheiro é euro agora) como de permanence (Valéry continua a profetizar, em cheio, quanto a acertadas coisas do então-porvir. Em outros aspectos, todavia, nem tanto assim, note-se. De qualquer modo, é livro sumarento). 

    II 

    (À medida que vou dáctilo-compondo este VinteVinte, revisito o passado-recente: nunca deixa de ferir-me a fugacidade. Sem registo-manuscrito, mais fugaz seria ainda esta corrida insana que medeia ter-nascido de ir-morrer.) 

    III 

    Uma senhora italiana & um senhor argentino trabalham nos bastidores de um salão associativo financiado pelo município. É algures na Alemanha, penso que a noroeste da Alemanha. Lá fora, vai meã a manhã: fria + límpida = frígida. Às onze, pausam. Tomam chá forte, mordiscam barrinhas de chocolate-negro. Retomam o trabalho até às duas da tarde. Quando terminam, o platense tem a esposa esperando-o no camarim. Solteira, a calabresa parte sozinha. Acontece muito. 

    (IV) 

    (Sinto menos comunhão com o rebanho. 
    Tem vindo a ser crescente o alheamento. Talvez deva dizer – alienação. Não é casual. Não é fortuita. Não é efémera. É o que é & como é.) 

    V 

    Uma notícia refere “milhares de milhões de dólares”
    Outra acentua “subida gravosa da pobreza” – mas não diz dolo




VinteVinte - 211 (escolhido)


Ludwig van BEETHOVEN
(1770 - 1827)





211.

 DAR & DANAR

 Coimbra, quarta-feira, 16 de Dezembro de 2020 (I-II)

Coimbra, quinta-feira, 17 de Dezembro de 2020 (III-VIII)

 


     

    Um rapaz brinca na orla do bosque ocidental. De momento, está de costas para a casa de sua origem. Entretém-se mirando a azáfama simétrica de ida & vinda de um formigueiro. Volta a casa, traz um bocado de pão, que esmiola em partículas. Asperge o carreiro daquela dádiva, para elas celeste. Observa como elas contactam o achado, como o intercomunicam, como começam já a fazer espólio de tal maná. O rapaz imagina-as sendo medalhadas por sua rainha no salão-mor subterrâneo. Dar é uma forma perfeita de criação de beleza. Assim é que o rapaz sobe. 

(...)


    IV 

    Há hoje mais & mais clara luz. 
    Pode o olhar lavar-se em extensão. 
    Não tem sido bem assim ultimamente. 
    Dura pouco o aparato diáfano. 
    Depois do meio-dia, menos claridade. 
    E agora Pedro Ângelo deita-se para a sesta, corridas as cortinas a toda a extensão, o bulício exterior é mínimo, cada 45 minutos (ou mais) o autocarro, pouco vento, já não molhados de sol os cedros enfileirados a oriente. 
    O recolhimento molda o corpo. 
    Os (poucos) móveis da casa cumprem em ordem. 
    A liberdade é da política interior. 
    Ficção não tem de ser ilusão. 
    E agora Maria Ângela sai do trabalho, nenhum problema de maior ferocidade a atenazou, foi mais ir gerindo as alterações normais do expediente, lá mais para finais de mês é que são de esperar decisões rápidas, ela está pronta sempre. 
    Eu? Eu tratei mais a fundo da cozinha. 
    Mudei a arrumação dos géneros secos. 
    Conferi as faltas, lapijei uma nota em rol. 
    Talvez sábado tenha de ir ao senhor Carlos. 

    V 

    Nada nos adiantaria ir por estes dias ao bairro antigo, onde a infância afinal pouco se nos demorou. Já por lá não é nem há Maria da Luz, a belíssima Milu que tanta rapaziada platonicamente alvoroçou. Morrer tão nova – não tinha quinze anos – veio cegar-nos de qualquer veleidade religiosa. Deus-filho-da-puta nenhum nos justificaria o injustificável. Caramba, aquele cabelo quase azul de tão negro, aqueles olhos tão negros quão o azul da noite! Maria da Luz, papoila branca ceifada sem culpa formada nem razão válida. A uma semana do próximo carnaval-natalício, já sabemos todos – sem no-lo dizermos – que não há que (nem como nem porquê) aparecer no bairro-infante. Que se dane o Bairro. Que se dane a Infância. Que se dane o Natal: pois se nem Maria nem luz, que se dane Jesus. 

    VI 

    Esqueça-se o que lembrança não merece. 
    Isto é tudo um fósforo – e a cinza não arde. 
    Para remorsos ou arrependimentos, é de mais tarde. 
    Viva-s’inda um pouco, que o resto nem aquece. 

    [VII] 

    [Não posso estar parado numa ideia quieta. Parece-me, tal, o mais insensato. A minha minoria é de um – um só, q.b. Há muito a/por aprender. A felicidade não cumula a demanda. Já é felicidade não ser por aí um triste. Não andar por aí ladrando religião. Ser uma pessoa em seu casulo-mental. Os livros abrem janelas, tornam palacete a atenção. Posso – e devo – resistir à charlatanice me(r)diática. O caminho é claro – e a caminha não é má.] 

    (VIII) 

    (E o gigante Beethoven faz hoje 250 anos de baptizado. Em boa-hora nado para o Mundo.)


VinteVinte - 210


Antero de Quental
(1842 - 1891)



210.

 AVENTURA

 Coimbra, terça-feira, 15 de Dezembro de 2020

 

    

    Saio à rua para assinar um papel. Hesitante meteorologia: de quando em vez, uma pouca de sol calafriorento, geral nublação. Já me não lembrava bem de estar fora de casa. Uma pessoa habitua-se. Ou resigna-se. Espero ter o papel tratado sem grande demora. Apanho depois o autocarro de retorno, abrigo-me, não faço ondas. A aventura de estar vivo pode prosseguir sem mais interrupções. Não digo que seja mau sair. Nada disso. Mas é verdade que a pessoa se resigna – até ao cativeiro. Em duas semanas, este ano esquisito estará calendariamente morto – mas as sequências, sequelas, consequências & corruptelas dele prometem (ou ameaçam) persistência. Não creio por aí além na “vacina” que aos milhões vai furar a grei. Parece-me negociata milhãonária. Continuamos (este corrente mês sobretudo) a contar óbitos impiedosos. Protegi-me de manhã escutando a senhora diva Anne Sofie von Otter cantando em francês. Tive depois (agora) de sair. Não por muito. 

    II 

    Penso não causar mal ser-se português. 
    Mal também não fará reler os nossos. 
    Levar Antero à rua; folhear Camões, piscar-lhe o (outro) olho, gargalhar o Eça, sublinhar bem a clara desenvoltura de Garrett. 
    Nada disto fazer, todavia, também não é maligno. 
   Ajuda-se uma velhota pela passadeira, informa-se itinerariamente um cego de fora, diz-se ao japonês onde é a Igreja de Santa Cruz. 
    Evite-se escarrar o chão todo: é feio, porco & mau. 
    Com isto agora do vírus-chinoca, sempre há mais tempo para repensar o que resta de vida, Margarida; o que sobra de ano, Germano; o que falta de instante, Violante. 

21/01/2021

REQUIEM POR MIM, MIGUEL TORGA - com os meus dois compositores favoritos: BACH & LEONOR ABRUNHEIRO

VinteVinte - 209


Sem humanos, monstros não haveria
+
O par Ian Brady / Myra Hindley não é assim tão raro



209.

 INTERRUPTA IMANÊNCIA

 Coimbra, domingo, 13 de Dezembro de 2020

  


    [I] 

    [Em determinada zona desta Cidade, certos energúmenos há que arriscam a paz & a segurança dos outros. O que fazem, ao que há muito vejo, é da mesma cor da merda. Estes cordemerdas vivem do alheio – público como privado. Não se deve passar com uma criança em sua periferia. Nem no deserto é de se lhes dar um copo de água. Os cordemerdas nutrem pelos outros (todos os outros) um profundo rancor. Tudo lhes é dado, não sei porquê. Nada se lhes nega ou sonega, não sei porquê. Se fazem parte do género humano? Não. Fazem parte do género cordemerda. E têm-se espalhado. Da Cidade, partem à conquista de bastiões antigamente reservados a gente decente. O cordemerda típico – pior ainda – é incolor. Temo que seja dele o porvir. Poucas vezes firmo & afirmo algo com este grau de lúcido receio & este aparato de receosa lucidez.] 

    II 

    Sem humanos, monstros não haveria. 
    Creio que a Natureza emendará a mão. 
    Quase é de sentir pena, mas só quase. 
    Corre mal o que pode correr mal, diz o M. 
    E tem razão, o lúcido malandro. 

    Dia não há sem que tal se verifique. O real não falha a si mesmo. As artes podem não melhorá-lo – mas ajudam o vivente a suportá-lo. O par Ian Brady / Myra Hindley não é assim tão raro, tão excepcional ou tão incomum pode pensar-se. É apenas mais notório por mérito da propaganda. Mas há mal inerente ao humano: o vizinho é para matar – e de preferência em avalista nome de um deus qualquer. 

    (III) 

    (Sei bem que o exposto em I & II infringe, contradita & profana o repugnante político-correcto desta era. Ainda bem.) 
 
    IV 

    Sei do corrente serão as constantes universais 
    Universo & indivíduo irmanam-se por essência 
    Há até quem diga que por imanente transparência 

    (…) 

    (Interrompo a versalhada porque me apercebo de rodapé noticioso dando conta da morte do escritor – grande escritor. John Le Carré. Tinha 89 anos. Deixa-nos enormíssima obra literária – e não redutível ao rótulo vão “de espionagem”.) 




VinteVinte - 208


JOHN LE CARRÉ
(1931-2020)



208.

 ELES É QUE O GANHAM

 Coimbra, sábado, 12 de Dezembro de 2020



O rebanho resignou-se à mascarilha, santo povo o nosso, que o somos. 
Saio esta manhã de uma pouca de sol dando no mundo-local. 
Aves verticais acorrem à mui branca farmácia do bairro. 
Mulheres na farmácia, homens no café, pombas no beiral. 
Já se vê muito carrinho-híbrido-de ir-às-compras. 

Não o fazia há muito, faço-o agora: consulto o jornal. 
Académica eliminada em Viseu da Taça de Portugal. 
Faleceu algures uma senhora chamada Capitolina. 
Faleceu alhures um senhor chamado Roque. 
São mais raros os avisos natológicos do que os necro. 

Nada é de muita importância neste carnaval sem relevo. 
Lucram as funerárias com a mortandade estatística. 
Como tudo & todos vão para o mesmo, há só que ter calma. 
Cumprimentou-me o Zé-Tó Ribeiro, filho de Armando & Odete. 
Há muito se finaram Odete & Armando, também vieram no jornal. 

Mais uma senhora híbrida estacionada à porta da farmácia. 
Vem de caniche, lenço de seda escarlate, botinas de verniz verde. 
(Parece a República mas de peito agasalhado, ó Mãe.) 
Faltam mosaicos na empena lateral do prédio da mercearia. 
Deve ter sido alguma infiltração aquosa, não sei ao certo. 

Já a manhã se nos acaba, é gaja para não voltar. 

(II) 

(Provenho de uma estirpe de homens dados ao sorumbático pasmo 
Não renego a condição, é cada um vela de velejar ou arder 
Entendo-me bem a sós com essa ancestral mas muda voz a esmo 
Prefiro de longe mais ninguém ao perto, assim é & deve ser.) 

    (III) 

    (Não vale a pena fanatizarmo-nos de sáfaros clubismos, eles é que o ganham, é  ou não é?, é pois.) 

    IV 

    É um pouco triste assistir ao frémito de ilusões parecidas as nossas mas sem a desculpa de serem nossas. Acontece-me sempre que penso em bibliografias bem-intencionadas, coitadas. Agora já não tanto, mas dantes sim, e muito, vinham ter comigo a que lesse este que aquele papel. E que a minha douta, afinal rôta, opinião lhes abençoasse a escritura. Era quase sempre quase tudo muito medíocre, chorrilhos de lugares-comuns, ecos de leituras mal-feitas de páginas mal-escritas em Língua mal-tratada. Eu todo rangia por dentro a tal frete. Até sonetos(!) me impunham tais almas provindas de algum florbelospancamento no costado de augustosgis-caixão-à-cova. Fui-me, naturalmente, fechando em copas & copos. Deixei de (a)parecer disponível a imitações versilibristas de eugenisophismas prenhes de “dedos”, “música”, “silêncio”, “solidão” , “vazio”, “mar”. Por vingança, já só leio coisas deveras óptimas. Assim me escapo de ler as minhas, ora tomai. 

    V 

    Lances, gestos, situações, frases – muitos destes elementos se me demoram. Aquela vez em que Gil Dias se comoveu ao dizerem-lhe que Cristina Draciano era viúva desde as onze da manhã, aquela manhã mesma. Aquela ocasião de Eurico Mourão, perguntando a Henrique Manuel se o velho Arnaldo Mário ainda matava o porco, lhe ter respondido este com a pergunta – Qual deles? Coisas destas, Sofia Verónica, coisas destas. 
    Sei já que não voltarei a essa povoação. Passou-me o tempo dela. Morreu demasiada dessa minha geração: Lino Leal, Manuel António, Tino Maria, Joaquim Francisco, Lucídio Miranda, José Antunes, Lídio Dias. Estão por franças & luxemburgos outrossim outros. Já nem todos vêm esparvoar em Agosto: têm lá netos, a miudagem nada quer da portuguesa maneira. 
    Não quero todavia ir por o modo-triste. Prefiro reaver aquela manhã em que por uma unha, negra decerto, não chapad’esbofeteei o cabrão do talhante que se fez à minha Muriel. (Sim, namor’andei com a Muriel, Verónica Sofia, não faças essa cara de caso-pasmo.) E quando andámos pelas ruas, bêbados como cachos-de-mesa, à sacada-d’água sem cuidar de serem as quatro da matina já dadas. Quem, Sofia V.? Pois éramos o Luís Baptista, o Zé Fonseca, o Orlando Costa & o Amílcar Moinhos. (A filha do Baptista enlouqueceu, vegeta no manicómio mais carregada de antipsicóticos do que de engaço a destilaria do Celestino Ventoso. Sabias, Verónica S.?) 
    Assim me entretém a mente – que às vezes, sim, mente: mas não por mal, SofiVera, nunca por mal. 

    VI 

Casa alta com terra de cultivo em torno. 
Dentro, o casal repara o dia conversando. 
Perfuma a casa um pão no forno. 
Gosto de visitá-la de vez em quando. 

    (VII) 

    (Fico a saber que morreu hoje, aos 89 anos, o grande escritor John Le Carré, nascido David John Moore Cornwell aos 19 de Outubro de 1931, uma segunda-feira.) 






VinteVinte - 207

PAOLO ROSSI
(1956 - 2020)

Via-se os jogos do Mundial no Restaurante O Sonho


207.

SONHO FECHADO SEM SER PARA OBRAS

 Coimbra, quinta-feira, 10 de Dezembro de 2020

 


    I

    Morreu ontem Paolo Rossi, estrela de Itália no Mundial de 1982, realizado em Espanha. Tinha 64 anos. Recordo viva & vìvidamente os momentos em que ele demoliu o Brasil naquele torneio que a Itália acabou por vencer. Esse hat-trick inesquecível, conseguiu-o Rossi naquela segunda-feira numerada 5-de-Julho-de-1982. Viveu pouco tempo, a glória é porém com ele. 


    II


Não me têm visitado muito.
Refiro-me às palavras já prontas a servir.
Tenho pasmado sem dor na consumação dos dias.
Vai-se escoando pelo ralo este ano abstruso.
A televisão conta, todos os dias, mortos novos.
Conta-os sem ser pelos dedos.
Ladra, altífona, a ganância das farmacêuticas.
Anda tudo a virar o cu a vacinas talvez-sim-talvez-népias.
Sim, é um tempo-não, este.
Modo tem de haver outro. Ou não tem.

Já não é 5, nem Julho, nem 1982.
Recordo porém mui bem essa segunda-feira.
Era então recente a minha maioridade.
Via-se os jogos do Mundial no Restaurante O Sonho.
Esse estabelecimento há muito fechou portas.
Ao lado dele mora a senhora dona Alice Duarte.
Tem 101 anos, nascida a 15 de Setembro de 1919 (segunda-feira também).
É muito boa senhora, muito gentil.
Fizeram-lhe uma festa bonita pelo seu centenário.
Também acontecem coisas boas na vida.

    III

    O rapaz voltou por duas horas, não mais, ao bairro original. Mudou o que (& quem) tinha de mudar. Permanecia alguma coisa do que tinha sido. Qualquer poupança não faria, ou teria, agora grande sentido. Porque morrera quem poupara? Sim. O rapaz ainda conversou um pouco com alguéns remanescentes. Escolheu não ir por ali mais longe. Caminhou pela berma, passou as fábricas aluídas, não olhou nem fotografou os destroços, tomou café no outro bairro, já impessoal vizinhança. Apanhou depois o autocarro, viu a Sofia do senhor Carvalho, que o não viu ou fez que o não viu. Saiu na segunda paragem a seguir à gare ferroviária. Comentou só para consigo a iminência pluvial. De facto, começou a chover às quatro & 13 da tarde. A poalha de água fez-se bruma, pouco se via derredor. O rapaz abrigou-se sob o patamar da galeria antiga. Ali funcionava a Barbearia Lampião, podia ler-se o Jornal de Notícias no tempo de espera. Há muitos anos que tal lampião foi apagado. São como são – tanto as coisas da vida em geral quanto as do comércio em particular. O rapaz é quem o diz. Ou dizia.



VinteVinte - 206 (cortado; pode ser que em papel venha tudo)

© DA. 20 de Dezembro de 2021 - 18h14m24s


206.

 

SE ME CHAMASSE DANIEL ALZHEIMER,

NINGUÉM ME ESQUECERIA

Coimbra, de sábado, 5, a terça-feira, 8 de Dezembro de 2020

 


    I

    Vivendo por parcelas, só a morte nos dá soma. Não é isto mal nem bem, isto não é bom nem mau: é o que (se) pode ser.
    Permito-me considerar coisas destas porque, enfim, sim. Já, julgo, V. disse que sou do tempo em que os futebolistas não usavam, como agora usam, soutien
    Eu sei: os dois primeiros parágrafos não estabelecem de rompante uma reputação literária. Eu sei. Ocorreu-me no duche que a melhor, se não única, maneira de não ser esquecido, de firmar nome duradouro no panteão livresco – seria chamar-me Daniel Alzheimer. Vá. Digamos. (...)

II

Gratidão é o que sinto à plena portuguesidade desta finimanhã
Fim da manhã aberta à incerteza da tarde que se segue
Campânula nublada interdita o sol, o vento é felizmente frio
Vê-se daqui primeiro o cedro, o limoeiro é depois no olhar
Resultou bem a hora de saída, uma vez na vida.

Pouquíssimo havia a tratar fora de casa, hoje como de costume
Levei à repartição um papel sério, seriamente mo aceitaram
Algumas moedas me levaram ao pão, ao lápis, ao café, aos bolos
Não tarda depositarei os ossos no mármore figurado da casa
É quanto lar posso, há quem ande bem mais à rasca.

Parece natura da coisa só depois de vivida parecer perdida
Sereno é o animal que a vive sem interrogá-la
A infância é essa primacial coisa que um fósforo queima
Depois já se sabe, a artrite, os mínimos colapsos cardíacos
A pasmaceira sem diferença, a gratidão que às vezes pensa.

(III)

(A memória conta a si mesma contos a que aumenta pontos.
Não o faz por ser mentirosa, fá-lo por sujeita a natural compensação.
A morte opera no sentido da autojustificação, inocentinha.
É a ingénua dama que vai aos bois-de-boulogne à caça, é sim.)

IV

Certa quase-hesitação ronda-me por vezes o instante.
Não atinge gravidade, ronda apenas a minha carcaça.
Pessoas há-de haver sujeitas a símil titubeante
hesitante p’ra-trás-p’ra-diante estado-sem-graça.

É bicheza humana o que enfim ao espelho miro.
Raspei há pouco a barba, alisei-me o focinho. 
Ninguém me tem conversado, coisa que aliás prefiro
a tretas que não valem o cabrão dum tostãozinho.

O hóquei-em-patins não é desporto olímpico porquê?
Esperai: vão fazer do breakdance modalidade das olimpíadas!
Este tempo é grotesco, é tempo de vis piadas.
Campeia a ignorância, tudo manda quem não lê.

Feia era, desgraciosa idade, merda d’época, anos maus.
Saudades não deixo: eu mesmo podendo as não sentiria.
Devenho velho amargo que em tudo vê caos,
desse caos ignorante que nem é anarquia.

(...)






20/01/2021

VinteVinte - 205

© CRUZEIRO SEIXAS


205.

OU N. D.

 Coimbra, quinta-feira, 3 de Dezembro de 2020

 

    I

    Centenário, hoje, do nascimento de Artur do Cruzeiro Seixas (que morreu porém a 8 de Novembro último, falhando por pouco as cem velas). Em Fevereiro passado, foi o de Joel Pina. Também este ano, o século da primeira-luz da divina Amália. E o de Bernardo Santareno. Morrem entretanto, além de Cruzeiro Seixas, o treinador Vítor Oliveira, o filósofo Eduardo Lourenço, o ex-PR francês Valéry Giscard d’Estaing. É o fulgor da Grande-Roda.

    II

    Continua-se. Entretém-se o tempo disponível. A manhã já ardeu, a de hoje. Ali, provisões guardadas em reserva. Aqui, possibilidade de papéis com substância. A descomunal indiferença cósmica pelo humano? Veja-se nela pacificação, querendo ou de tal precisando. Esta casa dando-se, concha, ao bicho-em-espiral. Manter esta voz interior em transmissão contínua mercê da cifra escrita. Referir Adriano, Cláudio, Marriott, Dillon, Slade, Kirby, Dupin, Horácio, Bruno – em andamento sempre, por mais confinado (que ’inda não-finado) o corpo.

    [III]

    [Numeradas romanamente, cada subparte de cada entrada/dia pretende tão-só dar, de si-mesma, o si-própria. Não visa nem quere nem pode qualquer articulação sistemática do ser/estar/ter/haver/&/perder desta (mesma & própria) vida.]

IV

A Cidade. Cada pessoa, cada cidade. Como a vida, irrepetível.
Encontro, só-a-sós. Nenhuma fala – mas toda a pedra.
É engraçado, sei mais dela agora, agora que se acaba o ano.
Ou antes: agora que se me acabam os anos.
Sim. É isto o que quero significar. Balcão ao sol. O cego & o doido. 
(Dois-em-um, às vezes.) Insensata correria.
Porcariazitas (milhentas) comportamentais: fazem parte, são. 
Mais são os salões-de-cabeleireiro do que as mães.
Deixaram cair as letras, não se sabe de quem seja o busto:
que vida ali está de gravata, óculos, expressão cismática.
Ubíquo troar buzineiro. Fancaria. Uivos-do-INEM.
Mercadores de aflições. Doutores pequenitos como caricas.
Bandeirolas. Padres-américos. Padres-cruzes. Padres-canhotos.
Eletricista empoleirado, precário, renovação do quiosque.
Jogos-da-santa-casa. Até a humidade apodrece.
Cozinha-dos-pobres-sopa-do-sinónimo-perdão-do-sidónio.
Bilhetes & averbamentos.
Ao sol, a igreja urbana, mais impessoal do que a aldeã. 
Consultório ginecológico-obstetrical. Manequins decapitados.
Vestidos para noivas. Mais um cabeleireiro. Bar manhoso.
Chineses sempre de clandestina discrição, secretos expostos.
Ou nada disto.






Canzoada Assaltante