31/12/2020

VinteVinte - 171 (conclusão: XIII-XV)

na posse da certeza inelutável:

a de morrer quando o entardenoitecer do mesmo dia

desse a primeira hora na Rainha Santa



    XIII

    Houve outrora na casa senhorial da quinta uma senhora de reservada existência & hermética filosofia. Enviuvando, pareceu-lhe bem vender tudo, desde que com vantagem justa. Obteve o que queria – e a pronto. Tudo junto, dava para dez existências iguais àquela com que se propunha aguentar até à morte.
    Tomou hospedagem numa residencial que confrontava o Mondego. Dispunha de quarto, sanitários privados & saleta-de-leitura. Fazia fora as refeições, quase sempre na Casa-de-Pasto Madalena, que por décadas honrou as cercanias de Santa Clara.
    Sem filhos, sem pais, sem dependentes, sem sócios – restava-lhe a totalidade de si mesma, o que costuma ser suficiente para quem, na certeza de morrer, se vê vivendo até lá. 
    Associou-se à Casa dos Pobres, que propinava, não anual mas semestralmente, com donativo em géneros alimentícios, medicamentosos & de vestuário/calçado. Igreja, não ajoelhava. Homens, não quis. Mulheres, também não.
    Uma terça-feira de Março, despertou às cinco da manhã na posse da certeza inelutável: a de morrer quando o entardenoitecer do mesmo dia desse a primeira hora na Rainha Santa. Não se turvou. Levantou-se, tomou banho frio, vestiu-se de verde com lenço grená, desjejuou na pastelaria ali ao pé do Portugal dos Pequenitos. Só então a assaltou a incerteza – que esta era: que fazer das horas derradeiras de última luz?
    Ainda hoje não sei.

    XIV

    Dália, excelente Dàlita: 

    Por cá, como por toda a parte: pânico de uns, indiferença de muitos, morte de demasiados. O microscópico bicharoco made-in-China continua a cevar-se a eito, sobretudo (para já) entre os mais velhotes. 
    Literatura? Passa-se nada. É mania que morreu. Vende-se, é certo, muita livralhada – mas não nas livrarias. Nos correios & nas hipermercearias, são aos montes os lixos impressos, máscaras, eles também, conformes aos tempos correntes. Porcarias tipo auto-ajuda à americanóide, patranhas zodíaco-espiritistas, “romances” à código-da-vinci, imitações de imitações, merda de merda.
    Resta-me, magnífica Dàlita, ir lendo & relendo sem tréguas a biblioteca que em anos melhores ajuntei. Isso – e ir vivendo ao frio não do dia-a-dia mas do dia-por-dia, por mais viral.
    E contigo, bonita Dália?
    Que me dizes?
    
    Abraça-te a ti, a teu excelente marido & a teu belo filho,

    o

    X.P.T.O.

    (XV)

    (Na época em que já escrevia quase todos os dias, o mundo já se deixara de literaturas há muito. Parece-me que sim, não sei se acerto ou erro, embora de todo não desacerte. Enveredei, pois, por uma actividade maninha & de antemão condenada às poeiras inexoráveis do esquecimento. Não faz mal – repito-mo à maneira da raposa virando a cauda às uvas. Mas de facto não faz. Mal nenhum. Nem bem, graças-a-deus.)

30/12/2020

VinteVinte - 171 (XI-XII)


 

XI 

Plenitude da atenção a elementos constitutivos do real-imediato. 
Respiração, olfacto, camisola d’amarelo-torrado no espaldar da cadeira, 
meias lavadas-passadas-enroladas na gaveta-tope da cómoda, 
manta laranja-salmão sob a manga amarelo-torrada, 
volume de histórias fantasmáticas sobre dicionário encarnado. 

Da radiofonia, surde sem aspereza o linho de música/XVIII. 
Uma solitaríssima mosca encontrou abrigo no quarto. 
Boquiaberta, a pasta do computador velho expele um cabo- ténia. 
A cigarreira & o isqueiro amam-se ordeiramente. 
O telefone dorme como um menino sem préstimo. 

O estojo de fármacos subjaz em apoio à caixa de velas novas. 
Aos pés da cabeceira, saco com bolachas de ingestão nocturna. 
Dois azulejos na parede, um pintado à mão, outro com cromo. 
Na parede oposta, um retrato do Eça e um panorama de Santa Clara. 
Folha solta com rabiscos pró-mercearia sob o cinzeiro verde. 

Comichão sob o umbigo, unha fendida do indicador-direito. 
(O indicador-direito é o único que aponta a escrita em curso.) 
(A dita onicofenda é portanto especialmente notória & irritante.) 
Pré-alquebramento soporífico do Leitor. 
Stop. 

XII 

Em Nottingham, o português Ricardo Jorge Verde faz vida. 
Adaptou-se bem à alheia estranheza afinal sua, pois ali. 
É trabalhador, topa tudo, amealha esterlinas. 
Aprendeu a Língua sem ter de ir a cursos intensivos. 
Curso-intensivo vero é o quotidiano: trabalho, ruas, audição. 
Já compra o jornal, já ao fim-de-semana o lê. 
De semana, chega muito fatigado ao sótão tomado de renda. 
Come do saco que traz: pão, conservas, fruta, iogurte. 
Não procura outros portugueses – para tal, de cá não saíra. 
Comprou um aparelho de rádio, que toca baixinho como a guitarra. 
Toma banho & barbeia-se nas instalações do trabalho. 
Foi uma vez ao estádio, o Forest recebia o Derby County. 
Faz vida, enfim – isto é, gasta-a como ela se lhe dá. 
Por hoje, é quanto tenho a dizer dele. 

VinteVinte - 171 (VII-X)


Era no Botânico, por um Maio devindo improvável. 



VII

Campo aberto afora, veias de água têm altas magras árvores 
prestando-lhes sentinela, honra, amparo, gravuração. 
Ao dissipar-se a aluminiada luz da jornada cessante, 
invisível recolhimento da fauna se processa em mudez. 
Já os cultivadores se reconheceram por igual, eles afinal 
seguidores do mesmo ritmo de aves & rasteiros, iguais. 

Assisto a esta maravilha humilde de muito longe. 
Toda a vida o tenho feito esperando dela tão-só uma linha. 
Linha de prosa, linha de verso, linha de conduta. 

VIII 

Era no Botânico, por um Maio devindo improvável. 
A economia não se impusera como deusa, não ainda. 
O casalito seguia mãodadamente por a álea amável. 
Ele, apesar de homem, nada feio; ela, claro, mui linda. 

Já o que vem nos livros os atraía serpemente. 
Sabiam só de outiva haver no mundo maldade. 
Ele não era ainda acólito da religião da aguardente. 
Ela ainda o não trocara por outro gajo d’outro cidade. 

         IX 

    Joaquim José Diano, valente polivalente, faz expedições de trabalho ao estrangeiro. Oficia como pedreiro, electricista, canalizador, pintor, serralheiro. É, para mim, o verdadeiro super-homem. E existe deveras, não é falseada invencionice minha. Já fez quase toda a Europa. Fez duas vezes África, mas nenhuma delas lhe correu bem. Não volta lá. Por hoje, é quanto tenho a dizer dele. 

(X) 

(Números oficiais do dia panviral: 31 mortes, 2899 casos.)


VinteVinte - 171 (V-VI)

© DA.  15 de Maio de 2020 




V

padres-américos-padres-cruzes
cruzes-canhoto-por-moto-próprio
ópio-do-povo-ovo-&-galinha
tem-tinha-o-tinhoso-o-porco-sujo
milénio-das-trevas-século-das-luzes
jesuses-maomés-&-mais-aldabraaões
o-diabo-a-quatro-pintando-o-sete
mete-tira-&-põe-aonde-mais-dói
rói-rato-a-rolha-do-rei-raimundo
mundo-do-vírus-&-do-vira-do-minho
cominho-coentro-dentro-manjerona
zona-de-banhos-desenhos-da-mona
casona-gaiato-américo-padre
valha-a-santa-madre-posta-em-vinagre
comadre-parteira-também-alcoviteira
liteira-à-beira-da-verde-azinheira
sem-eira-nem-beira-sequer-litoral
afinal-ri-melhor-quem-ri-ao-final.

        VI

    A Conceição está no restaurante A Estação há 39 anos. A trabalhar, bem-entendido. Veio de Monção e nunca mais lá voltou. Não viu nem houve por cá quem se casasse com ela. Conformou-se. Prefere o turno da noite, que já foi bem mais trabalhoso – desde que fizeram a oeste a auto-estrada, A Estação serve muito menos clientes que fazem vida da rodovia. É dos pouquíssimos estabelecimentos de restauração ainda abertos 24 horas. Há um ano, passou a encerrar ao domingo. De facto, a caixa não fazia para o gasto de luz nesse dia ex-santo.
    Costumo ir ao Estação para beber algum tempo. Tenho lá o meu canto, a minha habituação, o ser tratado pelo meu nome antecedido por senhor: como se fosse o meu Pai a lá ir. Trato por dona a Conceição, coisa que já deveria ter feito logo de início. Desculpe, dona Conceição. 

VinteVinte - 171 (I-IV)




171.

 

BEM-VINDOS SEJAM OS COVIDados

PARA A MESA-DO-SENHOR

 

Coimbra, sexta-feira, 23 de Outubro de 2020

 

 


Fecha-se o mundo a si mesmo, de si mesmo algoz. 
Geral fealdade de pensamento, ideia & acto. 
É melhor, bem melhor, ficar em casa, de facto. 
Morre-se em barda porque-sim, a banalidade é atroz. 
Oh! Marcam greve para Novembro os enfermeiros! 
Chico’spertos nesta altura: querem medalhas & dinheiros! 

Bem-vindos sejam os COVIDados para a mesa-do-Senhor. 
Palavra-sem-salvação. 

(II) 

(Quase lamento ter chegado a misantropo. 
Mas só quase: deveras, nada me inculca filantropia. 
Repugna-me ser humano a grosso, carneiro de modas. 
Prefiro a gentileza, sabendo-a porém rara. 
Não volto – ninguém volta – a moça idade. 
A que tenho, tem-me – e usa-me em negação. 
Assim seja, enfim, enquanto eu for: que, 
de aonde for, 
não volto 
– ninguém volta.) 

III 

Revi dourada praia de meados dos 70/XX. 
Penhascos ainda não aluíam sobre inocentes. 
Era transparente o azul bordando a hora. 
E trabalhar-o-bronze era matéria de estatuários corpos vivos. 

À diáfana reverberação éramos totais em saciedade. 
De casa se trazia a groselha, o capilé, o pão-com-ovo. 
Ninguém semeava seringas pelo areal descalço. 
E a pele fazia de vero portal ao cosmos franqueado. 

[IV] 

[Este meu diário bissexto 
é quanto posso apor ao real. 
Não é david-ante-golias. 
É (d)o que babam os dias.]


29/12/2020

VinteVinte - 170 (XI, para encerrar a loja capitular)


No Caramulo, em deserto vertical.

XI


Aldeolas, vilarejos, cidadelas.
Azulejos branc’azuis, de barro andorinhas.
Terra a que ouso chamar minhas.
Gatos vadiando ao mijo das vielas.

O Correia, que grelhava toucinho.
O Barroca, que dava sopa aos pobres.
Eu, quando ’inda ganhava uns cobres.
O João-Abel, que daqui foi para o Minho.

Íncolas ao relento beira-Choupal.
Garagens devolutas a granel.
A Acácia, violácea; o Gil, anil.
O toque digital no tumor mole.

A Santa, que lavava para fora.
A Marta, que metia para dentro.
Tu, quando dormias ao relento.
A Franca, que um dia se foi embora.

Mesas, tamboretes, psychés.
Bonecas-bailarinas de caixinha.
Nação a que ouso chamar minha.
O serviço-de-chá em belo grés.

O Tomé, metro & ½ se de pé.
O Alcino, que sofria por as gajas.
Ó Aldino, que para sempre bem hajas.
O Josué, c’uma piça de tripé.

Petingas, anchovas, cavalinhas.
Jarradas de verdasco refrigério.
Dótóres que se levam muito a sério.
Vistas a que ouso chamar minhas.

A Tina, por ser doida, desatina.
A Bela, por ser bela, só se ri.
A Mena, morena de organdi.
A Mila, que refila mas atina.

Cães que olham como pobres.
Pobres a quem nem cães olham de frente.
Sítios onde é barat’ a aguardente.
Carambinas, carambanos & alfobres. 

O Melo, capataz d’obras ingentes.
O Seiça, virtuoso do fagote.
O Suíça, achacado de má-sorte.
O Buíça, que matou as reais gentes.

Ministros, sinistros, banqueirastros.
Primeiras-edições maravilhosas.
Casadas em situações indecorosas.
Gandins sem velame p’ra tais mastros.

A Zuca, que coçava a passareta.
A Nicas, prospectora de viúvos.
A Bina, da loja dos adubos.
A Miana, freira & preta.

Tristes ao sol, dementes de hospício.
Peixe a secar na orla da praia.
Velhota estreando uma saia.
Nenhum rumor, ardor ou bulício.

O Maugham, mui seco & mui sabido.
O Chesterton, gozador de seu bocado.
O. Henry, tudo muito bem contado.
O Fitzgerald, molhado de bem bebido.

No Caramulo, em deserto vertical.
Em Sevilha, ante o andor do mundo.
Em tod’ a parte a tristura fala fundo.
Meu chamar ouso ao país de Portugal.

A Duras, em absoluto execrável.
A Agustina, divertida, já lá vai.
A Florbela, que espanca mãe & pai.
A Yourcenar, em absoluto incomparável.

Longes da infância, creme do olhar.
Pertos da morte, já vizinhança.
Incônsci’ alegria de viver sempr’em festança.
Bela é Constância, mas não quero lá morar.



VinteVinte - 170 (VIII-X)

© DA.  29 de Dezembro de 2020 - 18h 13m 44s


VIII

Eleutério Simões, bravo trabalhador da metalurgia,
compensa a certeza de morrer com a certidão da vida.
Ajuda as velhotas da rua, cuja existência estendida
lhe merece cálida & desarmante simpatia. 

Sim, a vida instabiliza, é ginasta, tem boléus.
(Em segredo, Eleutério antes assim a quer.
Diz ele – sem a boca abrir, pensando na sua mulher
– que antes o Diabo aos saltos do que cair em Deus.)

IX

Há muita gente infeliz, suponho que a maioria.
Tenho-a visto muito (às vezes até ao espelho).
Aquele, por ser órfão; aquela, por lhe doer o joelho.
A maior parte é José. A maior parte é Maria.

X

Vi ontem – mas só por filme – o grande nevão.
Bela, muito bela me é tal desolação.
Para ela me exilaria já & ora mesmo sem hesitação.
A funda noite dela me acolheria como irmão.

(Enquanto porém não, vivo-a em firme rimação.)







VinteVinte - 170 (III-VII)




(III)

    (Penso que o poema alinhado no II imediatamente anterior não peca por grande obscuridade ou impenetrável hermetismo. Compus já milhares de outros bem mais para a terra-de-ninguém. Estimulou-me a estrutura, que aliás não planeei. Escrevi-o devagar, atento às possibilidades – tanto as do significante quanto as do significado. Enfim: feito. Está feito. Sigo rumo a outras possibilidades de enunciação. À passagem, morreu na Pedrulha o senhor José Oliveira Gameiro. Foi, décadas a fio, funcionário da Faculdade de Letras da Universidade: antes, durante & depois do meu tempo. Pai da Luísa, morava na Rua do Plátano. Que descanse em paz.) 

IV 

“Junto d’um seco, duro, estéril monte (…)” 
– assim comecei o dia: lendo Camões (Canção X). 

As seguintes horas, naveguei-as em seguro pousio. 
Tenho comigo os livros, que me são fidelíssimos. 
Outubro tem sido parecido com os d’antigamente. 
Para minha agradecida surpresa, sim, tem sido. 

Fora, continua a comédia-triste da pandemia-made-in-China. 
Morreram mais dezasseis, mais 3270 novos infectados. 
Não se sabe quando isto acaba – nem se isto acaba. 
A contaminação não é só deste vírus-xis-pê-tê-ó. 

A contaminação é humanóide. Merda de espécie. 
Só que, entretanto, Camões. 


Morreu mais um homem na minha terra. 
Disseram-mo por saberem que me interesso. 
Vai o Tempo pontuando-se assim, empilhando corpos. 
Já não era novo, lá isso não, cumpriu seu prazo. 

Filmado, um outro indivíduo fala no televisor. 
Dizem-no “filósofo”, quando de frívolo não passa. 
Já quase rio disto, desta peçonha me(r)diática. 
Em muito boa-hora deixei tal carreira jornalisteira. 

O Benfica vai ganhando na Polónia (2-3). 
Nem a bola me sabe já a coisa apetecida. 
Camões, sim – o formoso zarolho é campeão. 
E a Vossa Senhora de Fátima também é campeã. 

Em Portugal, a eutanásia não chega a ser referendo. 
Esquisita gente, dona do sofrimento alheio. 
Esta é uma era que esquecerei: sem dor, morrendo. 
Deixo estes cadernos para que me cuspam na cova. 

VI 

A luz escarlate do reclamo alastra nos estores. 
É hora de ir jantando quem tem que o jante. 
Quase ninguém, porém, vem hoje ao restaurante. 
Negro, azul-escuro, cinza-esverdinhada – estas as cores. 

Vou pensando numa página inglesa que li. 
Um bocadito de pão, queijo-seco, azeitonas. 
Dizem que daqui do tasco são fufas as donas. 
Não sei nem saber quero do que se diz por aí. 

A luz escarlate 
etc. 

VII 

O caldo à nocturna hora sabe a teimosia existencial. 
É bom poder engendrá-lo, mesmo que (tão) a sós. 
Tenho estepes de tempo nestas cocções meditabundas. 
Melhor ainda se lá fora brama o vento lenhador. 

Tomado cálido em cônscia sabença do externo frio, 
o caldo anoitecido gasalha a vivência mesma. 
Atribuo-lhe a magia simples do sono prónuba & propedêutica. 
Assim me saísse o verso como me entra o caldo. 




VinteVinte - 170 (II)

© EGON SCHIELE

House with Bell Tower (1912)



II


Ideia de serranias povoadas de realidades verdes 
Por onde a mente perpassa qual brisa adequada 
Serena alternativa ao frívolo & brutal humano 
Bípede pacóvio gambozino de si mesmo órfão 
Ideia de litorais abertos à respiração visual 
Fechados porém à roubalheira bancário-financeira 
Interditos porém aos sicários teístas 
Proibidos no entanto aos miseráveis d’espírito 
Ideia de ruas lavadas ao ar limpo da noite pura 
Por onde ambular sem ida(de) nem retorno 
Convocado o ambulante por franca vontade-própria 
Em criativa liberdade que mal não traz ou faz aos outros 
Ideia de casas dentro das que se é rei & cavalo-real 
Onde as mulheres & os homens fazem de legos 
Restritas ilhas de perene usufruto turístico 
Interior turismo que fronteiras desconhece. 

Imagem de praças fruídas em renovada idade 
Ao lado de alguém afim-cúmplice ou a sós em segurança 
Praças de qualquer país capaz de banir a pólvora 
A pólvora, o punhal, a automática, a catapulta 
Imagem de barcos dotados de memória itinerária 
Naves tripuladas pelo desejo não-constritor 
Faluas às luas mais propícias da infância 
A infância a que a velhice narra fábulas perfumadas 
Imagem de choupais ardendo sem fogo ao vento 
Matas través as que o sono é benfazejo ao relento 
À calma dos trilhos juntando-se a lentidão dos passos 
Palácios ingentes da passarada mais eufórica & mais eufónica 
Imagem de máquinas transparentes chamadas palavras 
Palavras elas mesmas geradoras de imagens como 
Berço, cadafalso, bancada, salsa 
Ou então foz, feldspato, gato, gerânio. 

Família mas não essa de meros consanguíneos 
Antes família de claridades incorruptíveis 
De pessoas, não de gente 
De ir ver o mar, não de teimar na lixeira 
Família de solidária presença mesmo a muitas milhas 
Não de júris(im)prudente sobranceria deletéria 
Não de pré-condenação mas de marsupial coabitação 
Assim sim família, não clã, não seita, não quadrilha 
Família para lá do sangue, contemporânea dos elementos 
Família-fogo, família-ar, família-água, terra-família 
Dessa em que os filhos se volvem irmãos 
Irmãos já avoengamente sábios, lúcidos, aptos 
Família não de desertores mas de cultivadores 
De amados em prol de constante amor 
De leais trazedores da palavra-justa 
Única afinal que falta faz a quem dela é capaz. 

Razão de valores arregimentados sem dogma 
Daquele que colhe dos anteriores o suco primaz 
Daquele que entende como sinónimos a rosa & Piazzolla 
Dessa que corrige quando se trata de purificar 
Razão que fecha os olhos físicos à intenção supurante 
Habilitada pelo sol, licenciada pela noite 
Compreensiva no sentido de abarcadora 
Agressiva no sentido de açambarcadora 
Razão que se não separa do animal mas o complementa 
Própria para namorar aos domingos ante o coreto 
Distinta, humilde, taful, singela 
Mais de outiva que fonadora 
Razão conhecedora do futuro, em que a morte 
Sabedora do pretérito como pós-nada 
Conciliadora de contrários orquestrais 
Mãe de si mesma, insular & arquipelágica. 

Força que resulta mais da querença do que da crença 
Dessa que é ’inda mais forte do que a fraqueza pensa 
Capaz da rosa & capaz do estrume à hora precisada dele 
Vindicativa por ajuste mesmo que indirecto 
Força que aprecia a delicadeza obstinadamente 
Tornadora de tornados em zéfiros 
Volvedora de furacões em favónios 
Nunca amnésica, nunca indiferente, sempre força 
Força que não agride mas responde 
Dessa que bate mas não finge 
Que prefere fazer-se primeira do que acólita 
Saciando-se de vontade, não de volúpia 
Força que à alheia recriminação volve farol em espelho 
Apta a consertar, prontíssima a desconcertar 
Aptidão que vem do honesto estudo 
Prontidão que é sério engenho. 




VinteVinte - 170 (I)

© MIKE GOLDWATER  - Tottenham Court Road, 1977


170.

 

A UMA ESQUINA FÁCIL

 

Coimbra, quinta-feira, 22 de Outubro de 2020

 

 



    I

    A uma esquina fácil desta Cidade, certa manhã das antigas, posava para a indiferença geral um romeu-sem-julieta que reconheci dos meus & dele tempos primário-escolares. É um des(en)graçado meu afim. Como eu em outra coisa, andou ele nas duras. Parece que se deixou delas, que sobrevive da assistência-social em uma pensão ainda mais primária do que a escola que nos foi comum.
    Não nos falámos, nada que não banalidades nos diríamos decerto – e é verdade existir entre os de espécies como a nossa certo tácito reconhecimento provido (& provindo) de quási-compaixão.
    O silêncio é o ouro dos pobres, às vezes. E mais crisóstomo do que a literatura, às vezes. 

28/12/2020

VinteVinte - 169 (conclusão: IV-VII)



    IV

    Samuel Paty, o professor francês assassinado na sexta-feira, 16 de Outubro de 2020, é homenageado hoje em cerimónia público-(inter)nacional na Sorbonne. A França abriu há muito as pernas a toda a escumalha, islamita incluída. Aí tendes a paga & o símbolo: um professor de História, mestre & apologista do livre-pensamento, morto em casa, sua casa – que o mesmo é dizer na sua escola. Aí tens, França, a paga de abrires as pernas – e de fechares os olhos. 

    V 

    Apesar do exposto em IV, temo estar, cada vez mais, menos interessado no real-quotidiano – tanto o local quanto o nacional, tanto o peninsular quanto o continental, tanto o deste lado do mar quanto todos os demais lados dos demais mares. O meu Gato é tão mais interessante quão nem a cotejo deve ser sujeito. Digo-o com certo (mas pequenino) desgosto. 

    VI 

    Sem corpo, consciência nenhuma, mente nenhuma 
    – e alma, muito menos. 
    Não há (ou não hei, admito) volta a dar-lhe. 
    Sem a instância-corpo, só ante- ou pós-trevas. 
    Olhos & luz dependem-se. 

    As religiões são de uma ignorância criminosa. 
    Têm por indubitável o que só dúvida suscita. 
    Ou antes: nem dúvida, pois que se sabe 
    ser impossível saber. 

    Por que há coisas, tempo, mundo? 
    Porque a minha consciência as determina. 
    E se eu não tiver já corpo? Nenhuma consciência. 
    E então? Nenhuma coisa a tempo de ser mundo. 

    VII 

    De Darmstadt, o jovem atleta em Lagos, ao sol. 
    Com ele, de Konstanz, a namorada xadrezista. 
    Iniciadores dinásticos, pensei eu de imediato. 
    No Inverno seguinte, trocámos correspondência. 
    As cartas rarearam, desvaneceram-se enfim. 

    De Galveias, a moça fornida, grávida aos quinze. 
    Os pais do rapaz pagaram-lhe o desmancho. 
    Aos dezoito, os mesmos compraram-lhe bilhete. 
    De barco, para St. Ives, em Cornwall. 
    Que eu saiba, ainda lá mora & trabalha. 
    
    De Barros Secos, o moço magro, coxo da esquerda. 
    Brilhante carpinteiro naval, todos o diziam. 
    A solidão adulta comia-o por dentro sem tréguas. 
    A prostituição não lhe resolveu o problema. 
    Morreu de uma úlcera gástrica demasiado séria. 

    São nomes ora incorpóreos de sítios utópicos. 
    Na mente do leitor, pode que se recomponham. 
    Não sei – pugno por uma realidade alternativa. 
    Muito do que se não vê, sabe-se de outiva. 
    Aprender bandolim, recordar Ciccio da Calábria. 




VinteVinte - 169 (II & III)


169.

 

PREFERÊNCIA POR PESSOA-VIVA

 

Coimbra, quarta-feira, 21 de Outubro de 2020

 

 

(...)


    II 

    Entre o Nada & o Nada, alguma coisa é perceptível: enquanto um corpo houvermos para perceber-ser(mos). 
    Exemplo: 
    Regina cultivando horta em terreno fragoso. É por uma manhã livre, meia-luz nublada, sem frio nem fornalha. Animais, livres eles também, existem derredor o tugúrio de Regina. O companheiro dela, que é Marco, trabalha fora. Há uma série de instalações em zona demarcada, talvez oito quilómetros distante da horta de Regina. Numa oficina aí situada é que Marco trabalha. Re-unem-se pelo entardenoitecer, cada um munido de ideias que houveram no decurso da jornada que precede a noite. A casa desarma o visitante pela singeleza. Há as coisas suficientes, a começar pelas duas pessoas que lhes dão sentido. 

    III 

    Um quarto cuja janela permite confrontar natureza-viva. 
    Panos de relva com discreta geometria trabalhada. 
    Carvalho muito antigo em absoluta majestade. 
    Maciços silvestres como fronteira segura. 
    Vislumbres aqui & ali de muro em pedra-morena. 

    Adentr’o quarto, a cama de roupa impecável. 
    Sobre a cama, revistas recortadas, tesoura, álbum para colagem. 
    Cadeira com camisola verde-musgo no espaldar. 
    Escrivaninha com apetrechos mínimos para epistolografia. 
    Uma telefonia, uma vela, uma garrafa com água, à cabeceira. 

    Pouquíssimos livros em prateleira mínima. 
    Roupeiro oblíquo, roupa muito usada nele guardada. 
    Aos pés, calçado quási ínvio, mais revistas velhas. 
    Um garrafão há muito vazio, outra bugia. 
    Retrato avoengo na parede oposta à janela única. 

    Nenhum crucifixo. 
    A um deus-cadáver, prefere-se a pessoa-viva. 




27/12/2020

LEONOR ABRUNHEIRO, compositora


 

VinteVinte - 167 (V)

 

167.

 

AGORA QUE PARA CÁ DE MIL

 

Coimbra, sábado, 17 de Outubro de 2020

 


(...)



Das chuvas d’antanho, floria virente a colina. 
Fresca corria do regato a lâmina transparente. 
Ouriscava o curso, batido de sol aos pedacitos. 
E a orgulhosa cabra mordiscava rebentos avaros. 

A meu dizer bucólico concorria a seiva juvenil. 
Finjo-a hoje, que sem remédio se envelhece. 
Havia nas costas uma casa, a ela pertencia. 
O futuro era de dias para lá de mil.

26/12/2020

VinteVinte - 165 (XI & XII)




XI


A camisola de Sepp Maier é azul-cerúlea.
A de Jongbloed é amarela.
A minha é de louvar odes a Marília.
E a tua está tão suja, que já cola.

A poesia dá p’ra tudo, como a má-vida.
E como a boa também, feitas as contas.
Quem chega, não saúda despedida.
Quem é d’ida, vai a prós, não vai a contras.

XII

Acho-me há algum tempo pausando, calculando
restos de frase, como meu Pai d’exacto soía.
Eu achava então que era porq’ele envelhecia,
E era: contas sabia, frases (de)formando.

25/12/2020

VinteVinte - 165 (VII-X)


 
VII 

O crepúsculo é hoje felizmente outoniço. 
Saúdo o cotejo a tempos agora velhos. 
Certos tons áureo-violetas, âmbar, vermelhos. 
Todo um opúsculo me sugere isso. 

Vim ver, vejo, retornarei vendo. 
É mais pessoal o próximo, a este tom. 
Custa mais ser vil, custa nada ser bom. 
Eu mesmo outoneço no mero ir escrevivendo. 

Nada sei, pouco hei, muito m’interessa. 
Anoitece meio-mundo à escala global. 
Interessa-me a parte que diz Portugal. 
A manhã é manhã, por mais q’ora anoiteça. 

Um casal reencontra-se ao cabo do dia. 
– O dia teu, como foi? – Foi bom, e o teu? 
– Olha, vi a Maria. – E eu, o Eliseu. 
E vão comprar coisitas à mercearia. 

Já torra de último anil a torre d’igreja. 
Cinérea s’anuncia a inumação do dia. 
Gervásio vem com sede, pede uma fria 
copanázia espumosa, bem-dita cerveja. 

Gabriel está em vinho, já comeu a sandes. 
Eu versejo o Outono, mas também já libei. 
Proveito ele venha, da fama me não livrei, 
que zurrem os asnos d’orelhas mui grandes. 

Uma vez na (minha) vida, há doçura outonal. 
É o tempo que enfeita a preceito Portugal. 
Estes versos vou fazendo de casa a retorno. 
Quem não gostar deles, não vale ponta nem corno. 

VIII 

O tempo-de-escreviver é agora, não outro. 
Não me cabe apurar como pode isto ser lido. 
Não me cabe mandar pensar, emanar directrizes. 
Isto é o que faço no tempo que se desfaz. 

É de dar em doidos, se nos pensarmos todos cosmocêntricos. 
É preciso pôr K. (de Kafka) a calmantes. 
Vive-se & morre-se agora como se morrivivia dantes. 
Deixai lá a pedra d’água fazer aros concêntricos. 

(IX) 

(Os nossos olhos 
Mal direccionados 
Topam mais alhos 
Que bacalhau aos bocados.) 


Serviu – em abstracção – a sua Coimbra. 
Não se deu a famas, louros, palanquins. 
Por natura, ninguém hoje dele se lembra. 
Antes arroz-de-tomate & dourados jaquins. 

VinteVinte - 165 (II-V)


 
(II) 

(A sensatez é bem-vinda conforme dela as consequências. 
Liberdade & criação oxalá sejam duas destas. 
Conhecimento, vivência, decisão, império da vontade – idem tudo.) 

III 

Homem em moção permeando os elementos aparentes. 
O mesmo digo dele través os outros, os transparentes. 
Ele que frúa de suas horas – e das de quem o antecedeu. 
As futuras primam por o Não-Ser – há que desconsiderá-las. 

É aberto o Museu-Vivo de tudo, basta atentar. 
Listas sem finitude oferecem-se ao atento. 
Línguas, semáforos, pomares, relíquias contrafeitas. 
Daí que a Arte Poética desconheça capital mundial. 

Constrangimentos não são bem-vindos, de todo. 
Pouco-nada-zero importa, fora do homem, o que dele se diz (ou cala). 
Vale isto para todos os homens. 
Basta olhar os cães. 

(Os cães, as línguas, os semáforos etc.) 

(IV) 

(Enumerei ontem um elenco de ex-viventes. 
Fi-lo enquanto a televisão dava futebol. 
Entretive aquele par de horas em redacção. 
Não tenho por perdido tal segmento temporal 
– mas não o é, perdido, de facto?) 


É hoje franca a luz, saio hoje às ruas. 
Vou de camis’azul, sapatos fortes. 
Levo os olhos como janelas nuas. 
Os passos como dobradas capicuas 
ao azar da duração tirando as sortes. 

VinteVinte - 164 - (conclusão: IV & V)


 

IV 

Outras nascentes-de-silêncio reconheço no longe da idade. 
São algumas de gente que em pessoa conheci vivente. 
Outras, de livresco cariz, sob o leitor nariz as conheço só. 

Para banda de Santa Clara, a pessoa de Joaquim Laura. 
Alto, desengonçado, de trato fácil, hospitaleira calma. 
Nunca mais verei tal homem, assim é de lei. 

Na Nicolau Chanterene, perco-me de Alberto de Melo. 
Cáustico, cultíssimo, de supina graça, fácil nem sempre. 
Morreu sem quem lhe chegasse um copo de água. 

Joaquim & Alberto têm lugar neste livro como na minha vida. 
Nascidos ambos muitos anos antes de mim, deram-me ambos saber. 
E gratidão não é vocábulo que eu malbarate, nunca. 

Posso também indicar-Vos Mercedes de Castro. 
Dava o melhor de suas horas ao estudo de transcendências. 
Pertinente, não me maçava – aina bem que a não repeli. 

Mercedes não era de Coimbra, nem sei se alguma vez cá veio. 
Era de Penamacor – mas Lisboa lhe foi cenário de vida. 
Apresentou-me Nuno Cardo, de que não guardo jóia mnemónica. 

Penso ora nesta gente afinal muda enquanto coze a sopa. 
O televisor ladra o Portugal-Suécia sem Cristiano Ronaldo. 
Estamos ganhando por 1-0, golo de Bernardo Silva a passe de Diogo Jota. 

Rosa do Cego, florista, lavadora da igreja. 
Das pessoas mais sós que conheci. 
Nem a morte lhe fez grande companhia. 

Podeis apodar-me de mórbido por enumerar defuntos. 
Podeis afinal tudo: sois o Leitor – Derradeiro Criador do Texto. 
Por mim, prossigo nisto que é afinal resgate contra o Tempo. 

Também Vós vos ireis, acompanhar-Vos-ei eu pelo ralo. 
Não é a Morte a única vera Democracia? 
Não é ela de todos, com todos, para todos? 

Luísa, a que em menina sofreu graves queimaduras. 
Frequentava, desde órfã, a Casa dos Pobres desta Cidade. 
Morreu afogada na Barrinha de Mira, não chegou a ser mãe. 

Leonel, magnífico Leonel Albino, capelista & fadista insigne. 
O que eu gostava de ouvi-lo cantando António d’Alfama! 
Publicou um livro de versos para Coimbra, que solene o ignora. 

Judite Cortesão, a senhora do bolo-de-Ançã. 
Pureza do Lôgo-de-Deus, senhora das tangerinas. 
Amália de Jesus, senhora das esmolas. 

Este campo-santo é meu como a mão que o escreve. 
Rosalinda, que servia a dias por conta do filho. 
Rosária, que casou com um madeirense de Porto Santo. 

Ganhamos 2-0 ao intervalo, golo de Diogo Jota a passe de João Cancelo. 
Partida agradável de seguir, jogo aberto, rasgado, atlético. 
Sempre dá para desconfinar a ideia um bocadito. 

Nascentes-de-silêncio – comecei. 
Não é locução injusta. 
Os mortos sabem calar-se; eu, não. 

O Caniço que morreu na tropa. 
A rapariga que morreu nos braços da minha Mãe, lá nos Covões, anónima como a Lua. 
Eleutério Isidoro, morto na construção da ponte. 

De vez em quando, falava com vivos que conheceram alguns destes. 
Já quase não acontece, vejo pouquíssima gente, também raro saio. 
Entretenho o Gato, papo a biblioteca, escrevinho toleimas. 

Com Cecília do Anto, falei & ouvi falar de Joaquim Lauro. 
Com Victor Lobo, de Alberto de Melo. 
De Mercedes, com ninguém. 

Convosco ao menos, dá para falar de todos. 
Mal V. não faz – e a mim, algum bem traz. 
(E 3-0 à Suécia sem batota – com mais um de Diogo Jota.) 


Algures entre a pulsão re-inventiva & a vera lembrança 
dá-se, pendular, a atenção redactora cursiva. 
Espectros, dilectos retratos, nomes enumerados 
– por ordem sua só, r-existem ao caos amnésico. 

Não temer nem desejar, não esperar nem receber 
– instâncias verbais são que de valores promanam. 
Íntima honestidade se refute nunca, excepção sem. 
E então de resto tudo bem. 

VinteVinte - 164 (I-III)




164.

 

CALA-ME IDADE

 

Coimbra, quarta-feira, 14 de Outubro de 2020

 

 

    

    Demócrito, diz-se que ria das humanas insanidades. 
    Heraclito, parece que ante as mesmas chorava. 
    São antigas fontes; a do riso como a do pranto. 
    Entre uma & outra há-de o siso morar. 

    De ledoras delícias ando eu agraciado. 
    Uma delas me resulta do brilhante O. Henry. 
    Foi civilmente William Sydney Porter. 
    Viveu poucos anos, 48 só (1862-1910). 

    II 

    Disparam os alarmes. Em França, vai ser declarado o recolher-obrigatório entre as 21h00m & as 6h00m. Por cá, vamos passar para o estado-de-calamidade. Aventa-se que o Governo pode obrigar ao uso de máscara (também) na rua. Comédia global, infecto planeta, tristonho carnaval. 

    III 

    Chegam pela máquina-de-fazer-estúpidos, vulgo televisor, imagens de um mundo repelente. Bem o assentou o grande Orwell: triunfam os porcos em toda a linha. 
    Mais me obrigo a r-existir – à minha maneira, que outra não tenho, nem ensejo, nem conheço. Hoje foi dia de O. Henry, mormente. Em boa-hora regressei à escrita dele, anos muitos passaram desde que a conheci. Ele é riqueza contadora. Sabe como muito poucos expor uma situação, mover as peças, organizar o fluxo de dados, rematar a história. O volume de 25 short-stories que tenho em mãos é The Trimmed Lamp, precioso voluminho originariamente publicado em 1916, sendo reeditado em 1953 pela PAN Books. Adquiri o meu exemplar, em segunda-mão, a 22 de Maio de 1996 (quarta-feira), ali ao Arco de Almedina. O dono original não assinou (mas sublinhou muito, a tinta-permanente azul) – deixou todavia a sua data de aquisição: “Viseu – 28-XII-1954”. (Terça-feira.) É pessoa para já não ser vivo, tal remoto leitor. Que leu o livro todo, leu – todas as histórias estão (interessantemente aliás) sublinhadas. Ou seja: leio a minha leitura & leio a leitura dele. Uso óculos para a minha, mas é a olho-nu que olho por ele. 






Canzoada Assaltante