IV
Outras nascentes-de-silêncio reconheço no longe da idade.
São algumas de gente que em pessoa conheci vivente.
Outras, de livresco cariz, sob o leitor nariz as conheço só.
Para banda de Santa Clara, a pessoa de Joaquim Laura.
Alto, desengonçado, de trato fácil, hospitaleira calma.
Nunca mais verei tal homem, assim é de lei.
Na Nicolau Chanterene, perco-me de Alberto de Melo.
Cáustico, cultíssimo, de supina graça, fácil nem sempre.
Morreu sem quem lhe chegasse um copo de água.
Joaquim & Alberto têm lugar neste livro como na minha vida.
Nascidos ambos muitos anos antes de mim, deram-me ambos saber.
E gratidão não é vocábulo que eu malbarate, nunca.
Posso também indicar-Vos Mercedes de Castro.
Dava o melhor de suas horas ao estudo de transcendências.
Pertinente, não me maçava – aina bem que a não repeli.
Mercedes não era de Coimbra, nem sei se alguma vez cá veio.
Era de Penamacor – mas Lisboa lhe foi cenário de vida.
Apresentou-me Nuno Cardo, de que não guardo jóia mnemónica.
Penso ora nesta gente afinal muda enquanto coze a sopa.
O televisor ladra o Portugal-Suécia sem Cristiano Ronaldo.
Estamos ganhando por 1-0, golo de Bernardo Silva a passe de Diogo Jota.
Rosa do Cego, florista, lavadora da igreja.
Das pessoas mais sós que conheci.
Nem a morte lhe fez grande companhia.
Podeis apodar-me de mórbido por enumerar defuntos.
Podeis afinal tudo: sois o Leitor – Derradeiro Criador do Texto.
Por mim, prossigo nisto que é afinal resgate contra o Tempo.
Também Vós vos ireis, acompanhar-Vos-ei eu pelo ralo.
Não é a Morte a única vera Democracia?
Não é ela de todos, com todos, para todos?
Luísa, a que em menina sofreu graves queimaduras.
Frequentava, desde órfã, a Casa dos Pobres desta Cidade.
Morreu afogada na Barrinha de Mira, não chegou a ser mãe.
Leonel, magnífico Leonel Albino, capelista & fadista insigne.
O que eu gostava de ouvi-lo cantando António d’Alfama!
Publicou um livro de versos para Coimbra, que solene o ignora.
Judite Cortesão, a senhora do bolo-de-Ançã.
Pureza do Lôgo-de-Deus, senhora das tangerinas.
Amália de Jesus, senhora das esmolas.
Este campo-santo é meu como a mão que o escreve.
Rosalinda, que servia a dias por conta do filho.
Rosária, que casou com um madeirense de Porto Santo.
Ganhamos 2-0 ao intervalo, golo de Diogo Jota a passe de João Cancelo.
Partida agradável de seguir, jogo aberto, rasgado, atlético.
Sempre dá para desconfinar a ideia um bocadito.
Nascentes-de-silêncio – comecei.
Não é locução injusta.
Os mortos sabem calar-se; eu, não.
O Caniço que morreu na tropa.
A rapariga que morreu nos braços da minha Mãe, lá nos Covões, anónima como a Lua.
Eleutério Isidoro, morto na construção da ponte.
De vez em quando, falava com vivos que conheceram alguns destes.
Já quase não acontece, vejo pouquíssima gente, também raro saio.
Entretenho o Gato, papo a biblioteca, escrevinho toleimas.
Com Cecília do Anto, falei & ouvi falar de Joaquim Lauro.
Com Victor Lobo, de Alberto de Melo.
De Mercedes, com ninguém.
Convosco ao menos, dá para falar de todos.
Mal V. não faz – e a mim, algum bem traz.
(E 3-0 à Suécia sem batota – com mais um de Diogo Jota.)
V
Algures entre a pulsão re-inventiva & a vera lembrança
dá-se, pendular, a atenção redactora cursiva.
Espectros, dilectos retratos, nomes enumerados
– por ordem sua só, r-existem ao caos amnésico.
Não temer nem desejar, não esperar nem receber
– instâncias verbais são que de valores promanam.
Íntima honestidade se refute nunca, excepção sem.
E então de resto tudo bem.
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