16/12/2020

VinteVinte - 156 - (conclusão: III-VI, sem cortes)

© DA. 



156.

 

OLÁVIA, MINIATURAS, PERTENÇA,

ACÉDIA, ÍNSUA & ETERNO GATO

 

(...)

Coimbra, domingo, 4 de Outubro de 2020 (III)

Coimbra, segunda-feira, 5 de Outubro de 2020 (IV-V)

Coimbra, segunda-feira + terça-feira, 5 + 6 de Outubro de 2020 (VI)

 

(...)



III

Pertence-se a uma ideia-de-lugar mais do que ao lugar mesmo.
Esta é, pelo menos, uma probabilidade forte no Través-Tempo.
Com a paulatina degradação do corpo, a mente busca outra plataforma.
Não a encontra – mas procurá-la, dá-lhe um móbil.
Assim é, disso se haja ou não consciência activa, mediadora. 

Em singularidade, cada humano esbraceja em seu éter único.
O corpo procede como obscuramente pode & sabe: quer-se vivo.
Exercendo um ofício, faz por justificar-se, pertencer, ser precisado.
Cada um, em aparato afinal invisível, sonha ser do formigueiro.
Quem atentar nos transportes públicos, sabe-o sem esforço.

No balcão de uma casa vizinha, adejam gerânios, venta um pouco.
É casa com forno a lenha, capitoso pão é ali cozido.
O conjunto chamado Casa é conforme a ideia de quem a erigiu.
O exterior indica singeleza, ordem, proporção, suficiência.
O interior é regrado por seus oficiantes em privada sabedoria.

Uma manhã termina. Um batel singra. Um sino conta.
Da amurada do parque, olha-se quem passa a ponte.
É agora mais ríspido o vento, custa um pouco mais viver.
Outras casas, outras manhãs, tem sido tudo assim sempre.
Nada nos impede de perseverar em atenção dinâmica.

A oficina de velocípedes, a taberna que assa frangos à porta, a fonte de todos.
Ali onde D. Pedro cavalgava não sozinho mas com Ela.
Diz-se que vão fazer passar ali qualquer coisa em grande.
Ali os choupos marginam em perfeita ordem o canal.
É ponto de muitos antigamente, nota-se a aura do ar mesmo.

Cada olhar investe de si algo de que muito não retorna.
A noite, por ser de domingo, é de apurado teor ermo.
Longe, pirilampos ao frio: automóveis ligando desertos.
Um leva namorados a um carreiro de mata escuro.
Eles lá sabem, não é seguro mas eles lá sabem.

Demasiados anos, talvez, custam demasiados olhos.
Procura-se quem de definitiva vez olhe por nós.
Adocicada, enjoativa ilusão essa, por pusilânime.
Nenhum olhar é repetível, nenhuma hora retrocede um rio.
É bem que tudo bem seja assim. Ideia & lugar, olhai.

(IV)

(Menos feral & mais feraz me quero hoje o dia.
Manuscreva este corpo quanto o não aliene.
Mirre alienada sim quanta malfeitoria
de não-pia querença queira se me condene
o fazer, o ser, o estar, o não ter sequer freguesia.

Acédia acmástica me não use ou tolha.
Rigor use eu antes, durante & depois.
Tudo vem que virá da que fizer eu escolha.
Aniversariou-se ontem José Daniel: 72.
A ele doo, deste livro, cada verso & cada folha.)

V

Algumas palavras libertam. Outras – são carcereiras.
É de cada o ir liberando umas & a outras abjurando.
Daqui, com cedro & tanque, vê-se a ínsua de tangerineiras.
Ninguém derredor: a calma é sã, vem compensando.

VI

São ainda as horas possíveis, há ainda tempo.
Nem tudo escureceu, artes querem uso & decisão.
Alguém ’inda nos dirá algo – ou talvez não mas enfim.
Um nome feito história-em-frente – ou menos.
Sol & chuva dão no saguão de uma família extinta.
Ainda as sardinheiras rubram as esquadrias.
O eterno gato domina o território, goteja algures d’algures.
É bonito o postal, não tem de ser mentira.

Ou então, que se me permita contá-lo de outro modo:
Zona de armazéns monumentais, deserta à noite.
Além, a colina subindo até a ermida.
Desdentada de portas, a ermida é ora antro de drogados.
Fragmentos de altar, seringas, rosas pulverizadas: o costume da fé. 
Atrás do orago, a colina desce, descamba em casaria.
Casotas baixas, iguais, de gente igual & não-alta.
Silvas povoam os pátios, al ali se não cultiva, amoras só, aromas só.

É indecorosa a sujidade só humana infligida ao mundo.
A terra dói de lixo, o antídoto é porém tão simples.
Em glória suja, triunfam os energúmenos mais ímpios.
Para isto afinal dá apenas a noz cerebral.
Não se busque o absurdo fora do desumano-género.
A brutidade das megametrópoles é irremediável.
O sentido é não haver sentido, áspera não-semântica.
Ninguém nos contradiga sem do avesso prova-provada.

E no entanto, um pode ainda propiciar-se horas crescentes.
Decentes horas de comunhão com o que há & o que é.
Seja-se lúcido: é de cariz monolugar, o veículo trans-horário.
A volta é por enquanto garantida, a ida não é fatal.
Trilhos denunciam anteriores viajantes-unos, entre verdes.
Em espiral perceptiva, recolhendo em Língua o necessário.
Ruivos poentes, levantes de anil azulejo, o ar feito louça.
E cavalos no prado - & nenhuma máquina ao comando.

Não-raro já se vê volvendo-se sinistra a ignorância-voluntária.
Quão mais ignara, mais moralizante a bípede besta.
Nem a solidão forçosamente nos livra de inimigos.
O concertado silêncio, verniz melhor do desprezo, pode vencê-los.
A sós, nem superioridade nem inferioridade: só sol & sombra.
O pão comido em silêncio – mas à luz.
O vinho bebido em memória – mas sem comunhão.
A receita não é regra; cada um(a) se desvende os olhos próprios. 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante