© DA. 26 de Agosto de 2020
152.
ÚLTIMA O. DE CÉU
Coimbra, terça-feira, 29 de Setembro de 2020
V
Recordo com força de lei uma noite ferroviária,
era de cortante friagem a invernia residente,
pouquíssimos éramos os passageiros em curso,
para trás nos ficava o mar, pela frente o berço,
nós coimbrãos íamos à Figueira como visitando a filha,
essa era uma era já demoradamente lutuosa para mim,
ainda assim socorria-me a mocidade mesma minha,
Coimbra era já bem presa do anoitecimento local.
os taxistas quase choraram de frustração,
descemos os quatro, três eram esperados, eu fui a pé.
A avenida mais cerca era pista de fantasmas,
um pouco aquém da massa lírica do velho Choupal,
não era ainda sobrepovoada pela via-rápida futura,
o Café Danúbio trabalhava as 24 horas de cada dia,
tinha chovido um pouco antes de chegarmos,
recomeçou a chover quando eu pedestrara tão-só uns metros,
como a pressa era nenhuma recolhi-me ao bom Danúbio,
em cujo imo se forravam quentura as aves-da-noite,
entre as que duas senhoras-de-aluguer de dura vida,
ali me valeu o ponche limonado bem aquecido a vapor.
Então o céu exterior chateou-se a sério, veio tormenta agreste,
a condensação glaucomou as vidraças, existir-se tornou-se submarino,
começou a servir-se bifanas feitas na hora, a rádio dava Amália non-stop,
existir era hora aprazível, eu não escrevivia tanto na altura,
de facto não – mas já lia o meu bocado, recordo essa noite bem,
pus-me a ler a miudinha tradução do Bosque Proibido de Mircea Eliade,
foi destas coisas que ficam na pessoa por não-apurada razão,
o certo é que já perto das duas da manhã o temporal cedeu,
houve geral debandada, ficaram dois + o patrão + eu, quatro certinhos,
naturalmente pusemo-nos a bater a sueca à rodada por cabeça-de-dez.
Já era amanhã quando me devolvi ao ar-livre do sábado,
era moço, não de mais me pesava não ter dormido,
subi até à Conchada pela Rua de Aveiro, depois até Celas,
depois Olivais, aí tomei café lendo o pasquim fresco do burgo,
nada me urgia, já então se me mostrara nítido certo vazio,
refiro-me à vanidade tanto das mores quanto das menores porfias,
o luto não era antigo, corria antes fresco no meu sangue,
Coimbra todavia ainda me tratava por tu, velha magana,
e eu andava cá & lá como quem até em praia tropeça,
modo de dizer afinal não descabido de todo, dito hoje.
Cedo foi pois que me pus a achar pequeno o que parecesse grand’espingarda,
assim foi, escuso de jurá-lo, não é que de viver haja abjur’abdicado,
não, não é por aí que mais bem me lereis, por aí não é,
empregos-carreiras-prémios-estatuto-caganeiras são nada para mim,
é aborrecido que todos estes volvidos anos tão firmemente mo reiterem,
aborrecido mas cruamente confirmado, poucas são deveras valiosas as coisas,
dos Olivais desci à Solum, um passo até o Calhabé, onde almocei,
julgo que já casa nenhuma me esperava, já então não,
isso não é o bem nem é o mal, o Mircea Eliade romancista, enfim,
não é bem o filósofo-antropólogo de subida & reconhecida nomeada.
Algo porém vale algo ainda.
Por esse algo tenho ido.
Não importa que importe ao mundo ou não.
Nasce-se, acontece o que se sabe.
Nos entrementes, algo por aí brilha.
Éramos mesmo só quatro os de fora-comboio.
Quatro éramos os jogadores de sueca.
Vai-se estando um pouco: com estes, com aqueles.
Depois, ninguém te vê por/para onde fores.
Ganhámos a rodada, a cabeça ficou 10-9 a nosso favor.
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