© DA. 13 de Janeiro de
2015
152.
ÚLTIMA O. DE CÉU
Coimbra, segunda-feira, 28 de Setembro de 2020
II
Alguns tempos albergado em recôndito cu-de-judas. Serviços mínimos: posto de correios, taberna-mercearia, drogaria, feira quinzenal. Filarmónica, salão paroquial, destilarias domésticas. Praceta com plátanos poeirentos, cães soltos. Durmo em catre rígido. Como aqui & ali, ao sabor do que aparece. Há uma barragem a poucos quilómetros, de bicicleta vou lá mirar a água.
Quando digo alguns tempos, o mesmo é dizer alguns anos. E tal cu-de-judas é vários, cada um subsidiando de si a geografia que me cabe em sorte.
Neste sentido, entrelaçam-se & interagem(-se) díspares camadas de espaço(s)-tempo(s). Em vez de barragem, estuário. Em vez de vila, promontório fragoso, deserto, última oportunidade de céu.
Saio pois do estabelecimento A Nau, entro na Biblioteca Municipal, sonho com áleas despovoadas por onde freme o vento sem destino do meu próprio destino (ou desatino, é só mais uma letra e dá no mesmo), ouço conversar gente que não pode ser, vou ao Turíbio comprar soda-cáustica para desentupir a retrete, vejo que passam Fernando, Damião, Luís, Pedro – irmãos velhíssimos e, coisa rara, amigos & interfalantes.
Não cuido de amanhãs: são tão improváveis – e tão impraticáveis – quão os tantos ontens de que é feita a atenção que me guia. Prova documental: este mesmo diário do Ano VinteVinte, que em Janeiro comecei talhando sem nem intenção profética nem justificação-a-dar.
No Pontão-Norte, pescadores à linha traçam silhueta mui aprazível. Ali bate forte a vaga forte, não é raro que chegue ao rosto a sílaba de espuma da onda desfeita no calhau. O almejado Inverno encontra-me rondando o Mercado, cujos tesouros perfumam a transumância pensativa: peixe de uma beleza agora cega, fruta em festões régios, pão acabado de nascer do fogo, verdura densa, doçaria de mulheres aventaladas a branco-neve.
Entro no estabelecimento A Pernambucana, onde o solícito senhor Diniz decifra enigmas de jornal. Tomo o meu abatanado com duas bolachas-de-aveia, fumo ricamente Dunhill, nada me escasseia. (Escrevo aos 56 o que faço aos 23, mais de meia-vida, upa-upa, vivida.)
Em face ao fontanário da mais álgica & límpida água-de-nascença, um parzito de manos partilha laranjas & nozes. Caladitos, muito bem-comportados, o menino é Saul, a menina é Edite.
Não cuido de verdade, veracidade ou verosimilhança. Como na Pensão Flor de Matosinhos, assim na sua congénere da Rua da Sota, onde Lúcia Neves & Tomé Midas conceberam Isabel Maria há mais anos do que poderíeis – e eu entre Vós – crer.
Também é legítimo convocar Primo Colaço, o guarda-livros da Rua de Montarroio a quem saíram trezentos contos no totobola. E Carlos Bernardo, que desde sempre gere a Tabacaria Lacobrigense. E Fernando Abadia, herói da Flandres. Não me falta vida, não me faltam vidas. Eis-me de bicicleta ou rumo à barragem ou à face do estuário, ou não, ou ainda.
Em noite afortunada, no Restaurante Monte Carlo (ou Verde Pinho – não estou seguro) há manjar de vitela-com-macarrão. Em seu ninho, a estatueta da Senhora Rainha Santa Isabel anoiteceu espargida de rosas frescas. Germana, a patroa da casa (ou então Felícia, se Verde Pinho), sorri gravemente aos dichotes do amanuense Geraldo, que é parvito & nunca fodeu. Entro com António Gaspar, meu parceiro de xadrez. Abancamos, lauta hora, comemos dose & ½ cada um à maneira de frades de lendária gula. O vinho é de Silgueiros e vale carne. Ficamos esmoendo todo o serão, é quase meia-noite quando saímos. A manhã seguinte é a da morte, em desastre com tractor agrícola, do pai de António. Ou então morre amanhã. Ou faz anos de nascido. Tudo a ir dar com os mesmos burros na mesma água.
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