17/12/2020

VinteVinte - 158 (III)




    III

    Da livraria à praça escancarada, em marcha lenta, aproveitando o sol anémico de Outubro (aquele Outubro). Trocara libras por contos-de-réis no banco, certo conforto do lado do coração – as notas no bolso desse lado. Já a manhã dava as últimas de si. Era já notória certa urgência na prolongada febre que se chama – A Tarde. Entre uma & outra dimensões, havia que apascentar-se, não frugal nem copiosamente, havia sim que almoçar como faz toda a gente que pode fazê-lo. Estabelecimentos em profusão ofereciam serviço para o efeito. Conhecedor do mapa, escolheu a casa-de-pasto mesma em que noutro inverno topara jantando Joaquim de Oliveira, então prestigiado mandador de teatros & concertos de músic’antiga. Quando entrou, a luz da hora pareceu suspirar, resignando-se à descarga de água brusca, já gelada, voraz, que descia dos planaltos da Estrela. Pouco passava do meio-dia, era só escolher mesa dentre as mais pequenas. Escolheu a da janela que abria para os bastidores do Tivoli. Nada era, de momento, precário ou ímpio. Almoçou, pois. Os pratos-do-dia daquele dia eram, do lado do mar, bacalhau (com grão), e da banda terrena, vitela (de pucarinho). Foi pelo mar, como Vasco da Gama. Pagou seiscentos & setenta pelo repasto. Dali, rumou ao Santa Cruz, onde se ofereceu café-conhaque. Só então, agraciado pela leonina digestão, rasgou o invólucro (papel-de-seda, sem laçarote) dos livros comprados pela finimanhã. Era um a primeira obra publicada de G. Orwell, aquela em que ele vagabundeia por Paris & Londres nos anos intermédios das duas grandes-guerras. Outro, Lorca em New York por equivalentes anos. O terceiro & penúltimo, A Pele de Touro de Salvador Espriu. E o derradeiro era este mesmo VinteVinte, pois que posso menti-lo sem vergonha nem remédio. 
    Passou-se esse Outubro, mesclaram-se em lama & plasticina os anos, mortos novos vieram reiterar a antiguidade serôdia de cada nascimento. Ei-lo menos ágil por bandas do sentido Tovim-Solum. Além, descendo, já não é baldio, subiram ali prédios idênticos a caixas-de-fósforos postas na vertical. O formigueiro dali é do tipo trinta contos / mês acima da burguesia quase-média. Há o cavalheiro de panamá na tola & bengala de cana encastoada a prata. Há o sempiterno par de jarretas-jeovãs, perdão, -jeovás com suas brochuras mal traduzidas do brasilês mais chunga. Há a pastelaria com grande poster de praia com coqueiros ao sol azul & caribenho. Ele vai aos correios levantar o embrulho que lhe remeteram de Londres, cujo Mondego se chama Tamisa. Há burburinho, com polícia ao barulho, na esplanada do Gira. Ciganos & arrumadores-de-carros brandem-se navalhas. Disparam aplausos & apupos das varandas acima da marisqueira. É festa gratuita, chunga como o linguajar evangélico dos prosélitos, vil como a demora da felicidade a sério, sim. Aquilo desfaz-se enfim, os polícias recuperam do chão os bonés perdidos à chapada, vão detidos os ciganos numa ford-transit, vão presos os arrumadores noutra, o mais certo é soltarem-nos pelo caminho, a ciganada à beira-rio, os arrumadores no Terreiro da Erva, sempre se escusa papelada & horas perdidas no Palácio da Justiça. Já ele lá nem está. Nem lá – nem aqui. 


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Canzoada Assaltante