19/12/2020

VinteVinte - 160 (VIII & IX)




VIII


Fraca iluminação amodorra o quarto de Marília & Manoel. 
Já quási rasas, de sebo as duas bugias tartamudeiam débeis. 
A mobília é mínima: catre singular, cadeira, prego na parede. 
Meio queijo embrulhado em papel-manteiga, garrafa meia de vinho. 

Do olho-clarabóia surde a baça prata lunar. 
Frio que faz ranger o bolor omnívoro das paredes. 
Marília reza ajoelhada à cabeceira do leito. 
Manoel abre e fecha e abr’e’fecha o canivete. 

Cavalo de tipóia castanhola os cascos no empedrado. 
Faquistas ébrios rosnam obscenidades em passando mulheres. 
À esquina da rua dos teatros, o poeta Mário Caldas tem fome. 
Vale-lhe Juliana, que do balconete da sobreloja o atrai. 

Em a honrada taverna do Brás Zarolho, não se prega olho. 
Já o poeta Caldas, com moedas julianas, o antro adentra. 
Chispe cozido-em-branco, de vinagre aspergido. 
Vinho áspero, negro como lua-nova & palato de cão. 

Amuletos não vingam sorte melhor em desventura. 
Lamentoso carrilhão dobra exéquias da boa-sorte. 
Venenos & cáusticas sodas causticam a loucura. 
Já Bocage não serei. Antes, que tal vida, a morte. 

IX 

Era ainda pelos frios de um ano moribundo 
Era a mocidade em vigor, o mar muito perto 
As ruas tinham sentido, a vida parecia tê-lo também 
Os erros & os desacertos, não lhes chegara ’inda a hora 
Diz-se que doravante é sempre a descer, assim parece. 

Laços à nascença deslaçados, pecado é queimar tempo 
Tanto os do sangue como os das horas-más 
Custa bem caro liquidar tudo no empós de tudo 
Consegue-se, enfim, é preciso é usar calma 
Sal na ferida, bota em si quem quer, notai bem. 

Era como a ser não volta, norma que a Lei impõe 
O meu dia-de-trabalho era então de doze-horas-doze 
Sã fadiga me chegava pela noite já madura 
Eu ia cear a um entreposto aberto 24/7, salvo natais 
O dinheiro mudava de mês sem mais contas a abater. 

Não sei (mas sei) que fiz (& desfiz) desse rapaz inimputável 
Desse moço potável parecido com os outros & como os outros 
A haver deuses influentes, algum deles me foi sacana 
Força me não faltava (nem falta, notai bem), o ar bastava 
E vir à terra era uma festa graciosa, pagar não era preciso. 

Justapondo hoje os degraus pretéritos mal pisados 
É notória a tortuosa escadaria ao desamparo içada 
Lixo – algum dele humano – junca o saguão sem roseira 
A hera apodrece o muro que a suporta, cheira a água-quieta 
Valendo tão-só, à hora destes versos, ser sábado amanhã. 




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Canzoada Assaltante