15/12/2020

VinteVinte - 155 (abertura com I-III)




155.

 

TUDO É RIO

 

Coimbra, sexta-feira, 2 de Outubro de 2020 




    

    Um homem morou além, na casa azul-rosa do extremo da rua, onde o pinhal começa. Pouco saía ao mundo, pois que o mundo dele compreendia a horta nas traseiras da casa, os tarecos amados, a saleta dos livros, a cozinha simplicíssima com fogão a lenha. Foi sócio-correspondente de arcádias remotíssimas. Praticou a vizinhança com inquebrantável gentileza. Semelhava jamais ter sido moço, tal a gravidade da sua compostura quando ancião – como se ancião fôra desde nascido. Morreu sem uma nota discorde. Não se suspeitou de crime. Dois longevos sobrinhos-netos vieram, trataram das exéquias, doaram a livraria do velho à biblioteca municipal, venderam por bom preço a casa, a horta e o trecho de pinhal. Reaparece o velho aqui-agora, suspira, não mais se pensará nele. 

    II 

    Vinham da praia ao cabo de um mês todo esplendor. 
    Acalentava-os a ordem sensata de objectos & gestos. 
    Os paraísos-terreais existem – duram é pouco. 
    Recicla-os cada infância, termina-os cada infâmia. 
    Dar conta desse catálogo tem sido meu ofício, 
    no qual emprego ardis a de todos benefício. 

    Secciona-se-me muito a atenção verbal. 
    O instante presente serve de secretariado. 
    O sentido, busco-o todavia em al, assim lhe chamo. 
    O sentido é ser buscado, não encontrado. 
    Em boa demora resto fiel a tal estratégia, 
    assim me não falhe a nossa Língua egrégia. 

    III 

    Abandonado de mulher & filha, eis Rolando. 
    Resta-lhe um casebre de magra tijoleira. 
    Amanha sua horta, livros não folheia. 
    Não suspira nem se queixa, rijo s’aguenta. 
    Chamam-no ao grupo de cordas, aprende cavaquinho. 
    É como outra família, para que vive sozinho. 

    Crivado de cruas dívidas, eis Norberto. 
    Sonhou-se empreendedor, jogou mal as más cartas. 
    Quase foi encarcerado por uma sujeira diversa. 
    Retirou-se do tráfego, não dá conta de si. 
    Chamam-no ao grupo de sopros, aprende clarinete. 
    Sonhos já não gasta, que apanharam verdete. 

    Eis o velho bandoleiro, chama-se Lombardo. 
    Viveu de mulheres gastas, de pequeno contrabando. 
    Jamais se provou ter sido ele a executar Isidro. 
    Isidro era péssima rês da rua, ninguém o pranteou. 
    O recorrente cancro fulminou Lombardo, o Vilão. 
    Não chegou por tal a tarola do grupo de percussão.


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Canzoada Assaltante