155.
TUDO É RIO
Coimbra, sexta-feira,
2 de Outubro de 2020
I
Um homem morou além, na casa azul-rosa do extremo da rua, onde o pinhal começa. Pouco saía ao mundo, pois que o mundo dele compreendia a horta nas traseiras da casa, os tarecos amados, a saleta dos livros, a cozinha simplicíssima com fogão a lenha. Foi sócio-correspondente de arcádias remotíssimas. Praticou a vizinhança com inquebrantável gentileza. Semelhava jamais ter sido moço, tal a gravidade da sua compostura quando ancião – como se ancião fôra desde nascido. Morreu sem uma nota discorde. Não se suspeitou de crime. Dois longevos sobrinhos-netos vieram, trataram das exéquias, doaram a livraria do velho à biblioteca municipal, venderam por bom preço a casa, a horta e o trecho de pinhal. Reaparece o velho aqui-agora, suspira, não mais se pensará nele.
II
Vinham da praia ao cabo de um mês todo esplendor.
Acalentava-os a ordem sensata de objectos & gestos.
Os paraísos-terreais existem – duram é pouco.
Recicla-os cada infância, termina-os cada infâmia.
Dar conta desse catálogo tem sido meu ofício,
no qual emprego ardis a de todos benefício.
Secciona-se-me muito a atenção verbal.
O instante presente serve de secretariado.
O sentido, busco-o todavia em al, assim lhe chamo.
O sentido é ser buscado, não encontrado.
Em boa demora resto fiel a tal estratégia,
assim me não falhe a nossa Língua egrégia.
III
Abandonado de mulher & filha, eis Rolando.
Resta-lhe um casebre de magra tijoleira.
Amanha sua horta, livros não folheia.
Não suspira nem se queixa, rijo s’aguenta.
Chamam-no ao grupo de cordas, aprende cavaquinho.
É como outra família, para que vive sozinho.
Crivado de cruas dívidas, eis Norberto.
Sonhou-se empreendedor, jogou mal as más cartas.
Quase foi encarcerado por uma sujeira diversa.
Retirou-se do tráfego, não dá conta de si.
Chamam-no ao grupo de sopros, aprende clarinete.
Sonhos já não gasta, que apanharam verdete.
Eis o velho bandoleiro, chama-se Lombardo.
Viveu de mulheres gastas, de pequeno contrabando.
Jamais se provou ter sido ele a executar Isidro.
Isidro era péssima rês da rua, ninguém o pranteou.
O recorrente cancro fulminou Lombardo, o Vilão.
Não chegou por tal a tarola do grupo de percussão.
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