19/12/2020

VinteVinte - 160 (conclusão dessa sexta-feira, 9 de Outubro de 2020: X & XI)




X


O derradeiro autocarro da noite porta em si duas pessoas sós só. 
O motorista, cansado, nem pensa nem sente, vai por instinto. 
O passageiro, adoentado, congemina abstracções pleníssimas. 
Fora, as ruas dormem de barriga virada ao céu. 
Certa dolência, que aliás não mata, é da estirpe local. 
Amanhã, no mercado, alguns terão por boa a matina. 
O toxicodependente local mais veterano entregar-se-á ao Além. 
Enfermeiritas gaiatas sonharão médicos de noivado. 
Na mocidade, o derradeiro autocarro acontecia-me muito. 
Tal facto influenciou o que faço precisamente agora. 
Sei, uma vez na vida & por festa, o que digo. 
Praça da República, Jardim da Manga, Arnado, Casa do Sal, 
Estação Velha, Loreto, Fundições Gomes Porto – e Casa. 
O carro-vassoura dos Serviços vai água-varrendo os lancis. 
O do lixo troa engolindo a imundície perecida em combate. 
Quem pode, dorme contra o cansaço & a desesperança. 
Quem aprende, pratica o aprendido no sentido ascendente. 
Algures haverá só caminhos de terra, zero autocarros. 
Algures, ir no banco-de-trás é coisa dos citadinos. 
Ir no idem-da-vida acontece por todo o lado. 

XI 

Ulisses Freza aposentou-se, foi viver para a aldeia. 
Manteve o apartamento citadino, arrendando-o bem. 
Um afluente do Pavão cortava em duas a aldeia. 
Ulisses residia na margem-esquerda da corrente. 
A ponte de pedra era graciosa & corcunda. 
Grandes robles festejavam ambas as margens. 
A mercearia aceitava correio & servia telefone público. 
Ele deu por si desejando ter vindo anos antes. 
Rápido, obrigou-se a não pensar mais no irremediável. 
No primeiro inverno, recebeu lenha a troco de apoio-ao-estudo. 
Tinha três explicandos: dois rapazes & uma rapariga. 
Versavam História, Francês, Álgebra & Música. 
Voluntariou-se para servir na sopa-dos-pobres. 
Foi desejado por viúvas & solteironas, talvez algumas casadas etc. 
(Desconfiou de que pelo guarda-florestal também.) 
Uma infecção repentina cegou-o do olho-esquerdo algum tempo. 
Convalesceu a custo, desalentado pela pertinácia do pus. 
Custou-lhe muito não ler, ao serão, os clássicos-perpétuos. 
Como um zéfiro rasteiro & mau, cabislevantou-se então o rumor. 
Que ele & a explicanda se fornicavam, escarrando em Deus & na Pátria. 

O escândalo fabricado acabou dando em nada. 
Em nada, não: se o tribunal o não condenou, à mesma penou. 
Ostracizaram-no sem disfarce nem cosmética. 
Teve de vender a casa, deixar a aldeia, perder a paz. 
De regresso à urbe, hospedou-se em uma pensão perto do estuário. 
A vida não era irmã da vida que entrevira. 
Era um purgatório sem açúcar & sem cura. 
Não se convalesce de uma infâmia. 
A explicanda, seduzida pela fama, não disse nem desdisse. 
Puseram-na a servir na capital, onde depressa se viu prenhe. 
Ulisses Freza achou-se emparedado numa velhice temporã. 
Os ossos rangiam-lhe invernos anacrónicos em pleno estio. 
O olho-esquerdo voltou a cegar, para sempre dessa vez. 
Acabou recolhendo-se a um lar de múmias. 
Sem família nem relações, foi esquecido sem dor. 
Os inquilinos do apartamento lograram ficar com a escritura. 
O lar-terminal tinha aparelho-áudio. 
Havia no ar Beethoven, Ravel, Falla, Chopin. 
Acabou interessando-se muito por contraponto. 
E, uma noite sem número, acabou de todo, cegos ambos os olhos enfim. 




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Canzoada Assaltante