X
O derradeiro autocarro da noite porta em si duas pessoas sós só.
O motorista, cansado, nem pensa nem sente, vai por instinto.
O passageiro, adoentado, congemina abstracções pleníssimas.
Fora, as ruas dormem de barriga virada ao céu.
Certa dolência, que aliás não mata, é da estirpe local.
Amanhã, no mercado, alguns terão por boa a matina.
O toxicodependente local mais veterano entregar-se-á ao Além.
Enfermeiritas gaiatas sonharão médicos de noivado.
Na mocidade, o derradeiro autocarro acontecia-me muito.
Tal facto influenciou o que faço precisamente agora.
Sei, uma vez na vida & por festa, o que digo.
Praça da República, Jardim da Manga, Arnado, Casa do Sal,
Estação Velha, Loreto, Fundições Gomes Porto – e Casa.
O carro-vassoura dos Serviços vai água-varrendo os lancis.
O do lixo troa engolindo a imundície perecida em combate.
Quem pode, dorme contra o cansaço & a desesperança.
Quem aprende, pratica o aprendido no sentido ascendente.
Algures haverá só caminhos de terra, zero autocarros.
Algures, ir no banco-de-trás é coisa dos citadinos.
Ir no idem-da-vida acontece por todo o lado.
XI
Ulisses Freza aposentou-se, foi viver para a aldeia.
Manteve o apartamento citadino, arrendando-o bem.
Um afluente do Pavão cortava em duas a aldeia.
Ulisses residia na margem-esquerda da corrente.
A ponte de pedra era graciosa & corcunda.
Grandes robles festejavam ambas as margens.
A mercearia aceitava correio & servia telefone público.
Ele deu por si desejando ter vindo anos antes.
Rápido, obrigou-se a não pensar mais no irremediável.
No primeiro inverno, recebeu lenha a troco de apoio-ao-estudo.
Tinha três explicandos: dois rapazes & uma rapariga.
Versavam História, Francês, Álgebra & Música.
Voluntariou-se para servir na sopa-dos-pobres.
Foi desejado por viúvas & solteironas, talvez algumas casadas etc.
(Desconfiou de que pelo guarda-florestal também.)
Uma infecção repentina cegou-o do olho-esquerdo algum tempo.
Convalesceu a custo, desalentado pela pertinácia do pus.
Custou-lhe muito não ler, ao serão, os clássicos-perpétuos.
Como um zéfiro rasteiro & mau, cabislevantou-se então o rumor.
Que ele & a explicanda se fornicavam, escarrando em Deus & na Pátria.
O escândalo fabricado acabou dando em nada.
Em nada, não: se o tribunal o não condenou, à mesma penou.
Ostracizaram-no sem disfarce nem cosmética.
Teve de vender a casa, deixar a aldeia, perder a paz.
De regresso à urbe, hospedou-se em uma pensão perto do estuário.
A vida não era irmã da vida que entrevira.
Era um purgatório sem açúcar & sem cura.
Não se convalesce de uma infâmia.
A explicanda, seduzida pela fama, não disse nem desdisse.
Puseram-na a servir na capital, onde depressa se viu prenhe.
Ulisses Freza achou-se emparedado numa velhice temporã.
Os ossos rangiam-lhe invernos anacrónicos em pleno estio.
O olho-esquerdo voltou a cegar, para sempre dessa vez.
Acabou recolhendo-se a um lar de múmias.
Sem família nem relações, foi esquecido sem dor.
Os inquilinos do apartamento lograram ficar com a escritura.
O lar-terminal tinha aparelho-áudio.
Havia no ar Beethoven, Ravel, Falla, Chopin.
Acabou interessando-se muito por contraponto.
E, uma noite sem número, acabou de todo, cegos ambos os olhos enfim.
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