24/12/2020

VinteVinte - 163 (VIII-XI)




    VIII


    Muito ao de leve chapinhava a maré nos barcos dormentes. Ao frio da noite, dadas as onze no relógio da Câmara, pouquíssimos se venturavam. Do mercado, manava o perfume álgido do peixe mesclado de hortaliças já murchas. Era ainda vivente Mestre Araújo da Escola de Natação & Primeiros-Socorros. O senhor Dinis da Pernambucana também. Tinha carro-de-praça Artur Calemba de Vila Verde. Alice Guardado ensinava dactilografia na Rua da República. Chico Moisés morava na Travessa dos Banhos. O Marcolino servia ao balcão do Johnny Ringo. Eu parava mais pelo Viso. À meia-noite, mataram à porta do Ponte Nova um polaco bêbado que costumava dormir ao relento nas Abadias. Não se falava de outra coisa na manhã seguinte. Detiveram um marujo norueguês, que depois soltaram, tiveram de soltá-lo, nem unha de prova havia contra ele. De dentro do Ponte Nova, ou ninguém viu, ou fez que não viu. Ninguém reclamou o extinto. Passado tempo, pouco, ninguém se lembrava do assunto. Se alma tinha, em paz repouse o estranho coitado. 

    IX 

    Um homem bondoso houve outrora por estas afins cercanias. 
    Já não nasci em o tempo dele, morrera três décadas antes. 
    Deixou um lastro de fama que decerto não lhe agradaria. 
    Usou com suma discrição & sem interesse a sua nata bondade.


    Deu nome a rua, artéria adequadamente discreta também. 
    Ajudou muita gente, sobretudo da francamente pobre. 
    Tantos anos depois, o seu nome é, por regra, de excepção. 
    Merece limpa memória, mas não estulta beatificação.

    (X) 

    (Saiba o senhor, 
    senhor meu Pai, 
    que não risquei nem arrisquei fortuna. 
    Outro fado me escolhi, não o do vil-metal-sonante. 
    À velhice chegando, sei-a já custosa, miserável calhando. 
    Embora: 
    a morte, 
    que a todos tolhe, 
    não escolhe.) 

    XI 

    O clamoroso brado noticioso do corrente dia é o que dizem de Cristiano Ronaldo, o nosso bravo CR7: apanhou o vírus-chinoca. Por conseguinte, já não alinha amanhã contra a Suécia em jogo a contar para a Liga das Nações. Parece que o grande jogador está bem, isto é – assintomático. Mas jogar, não pode. Cautela & caldos-de-galinha etc. 
    Também o próximo Orçamento do Estado anda em berlindas. Palestra-se à Esquerda do espectro político para que a Direita não lucre com a eventual crise que um desacordo implicaria. 
    Eu só produzi linhas calígrafas. Foi jornada um tanto-quanto melancólica, abstrus’abúlica quase. Não botei pé na rua. Li muito pouco. Comi pouco também. Vesti o roupão, despi o roupão. Acabei dando-me a outras vias, ou seja – outras linhas. 


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Canzoada Assaltante