18/12/2020

VinteVinte - 159 (III & IV)

O melhor de todos era o Matt Marriott.



III 

À beira da ribeira, a casita branca de telhado verde é escola. 
Escola de Música Ofélia Montenegro. 
A senhora D.ª Ofélia foi nossa benemérita toda a vida. 
É justo que a singela escolinha a epigrafe em honra. 

As crianças gostam de aprender, nem os parvos o neguem. 
Para que solfejem como aves, vem da Figueira a pessoa certa. 
É Luísa Sarmento, mestra da divina arte pentagramática. 
Coxeia da perna esquerda, já nasceu assim, coitadinha. 

As crianças vão crescendo, como é de lei. 
Algumas seguem estudando, outras empregam-se. 
Absorvem-nas as fábricas do litoral, por norma. 

Também Luísa parece o que é: uma velha exaurida. 
A ribeira lá está – e, acinzentado, o ex-verde telhado. 
Muitos ontens barrados, bem melhor seria este soneto. 

IV 

Armando desapareceu há quase vinte anos. 
Não deixou recado. Dívidas, também não. 
Nem corpo – nunca o encontraram. 
Da zona, é o nosso mistério favorito. 
Falamos muito de tal assunto. 
Certo tipo de ignorância é picante. 
Lídia não sabe se é (mesmo) viúva, se o quê. 
Nem nós sabemos se é conto triste. 
Pode ter ido com os ciganos. 
Pode uma brasileira tê-lo abocanhado. 
São bem jibóias para isso, as brasileiras. 
São bons transitários para tal, os ciganos. 
Por mim, duvido – mas é feitio meu. 
Mesmo sem método, duvido muito. 
Menos da morte – da morte, não há que nem como duvidar. 

Fui muito com ele à Rua da Sofia. 
A meio da artéria, num vão-de-escadas, a banda-desenhada. 
Novos & em segunda-mão – maravilha tudo. 
Mandrake, Rip Kirby, Ene-3 – e o melhor de todos? 
O melhor de todos era o Matt Marriott. 
O Garth era bom. Batman & Super-Homem, bons. 
Mas o Armando & eu éramos incondicionais. 
Éramos sim, incondicionais mattmarrottianos. 
Perdi quase todas as minhas publicações. 
Não fui cauteloso, deixei perder-me delas. 
Desconheço se ele guardou as dele. 
Não ouso perguntar a Lídia. 
Acho que a mera menção a exasperaria. 
A hipótese-da-brasileira morde-a adentro. 

Eu gosto dela, ela é boa mulher. 
Não desarmou, criou os dois meninos. 
Armando não deixou dívidas – nem poupanças. 
Oficialmente, Armando é defunto. 
Mas Lídia usa ainda a aliança. 
Teve de vender a vivenda conjugal. 
Comprou um T-2 virado para a Estação Velha. 
Não ficaram mal-mal, ela & os meninos. 
Mas o mistério não lhes faz bem. 
Às crianças nem tanto, enfim, eram pequeninas. 
A ela, todavia, suspendeu quase tudo. 
Não, não é um enigma jovial. 
Toda a gente segue co’a vida às costas. 
Lídia, não – não pode, sem saber. 
Maneira de saber, não se sabe. 

A Lídia em nada é diplomada. 
Trabalha no que encontra. 
Sem contrato & sem expectativas. 
Trabalha no que encontra. 
Assim é com milhares – ou milhões. 
A nem todas se evapora o marido. 
Essa é que é essa & aí é que vai. 
Ela pode sempre recasar-se. 
Encontrar alguém válido. 
Alguém detentor de seus vinténs. 
Não, nada lhe propus, não p’ra já. 
Tenho remoído, é certo, essa corda. 
Lídia, sem perfídia, é ’inda apetitosa. 
Estes quase-vint’anos não a estragaram. 
Não muito. Não de mais. 

Só nada adiantei sei bem porquê. 
E se do azul surge o Armando? 
O Armando a rir-se com o n.º 145 na mão. 
O mítico 145 ultra-esgotado & nunca reeditado. 
Esse em que, não sei se no Arizona se no Colorado, 
Matt Marriott & Powder enfrentam, vencem & punem 
o malvado clã Astor-Leigh, latifundiários canalhas, 
gentalha da pior espécie, horrenda escumalha, 
deixando Matt para trás, sem se virar na sela, 
a bela herdeira Cora Wilma, 
Cora afinal tão sósia de Lídia, 
Lídia à porta do Fargo Ranch, 
lenço rendado alvejando adeuses amaríssimos, 
mas Armando sempre rumo ao sol-poente, 
já nas bancas o n. 146 com Garth & Príncipe Valente. 

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Canzoada Assaltante