29/12/2020

VinteVinte - 170 (III-VII)




(III)

    (Penso que o poema alinhado no II imediatamente anterior não peca por grande obscuridade ou impenetrável hermetismo. Compus já milhares de outros bem mais para a terra-de-ninguém. Estimulou-me a estrutura, que aliás não planeei. Escrevi-o devagar, atento às possibilidades – tanto as do significante quanto as do significado. Enfim: feito. Está feito. Sigo rumo a outras possibilidades de enunciação. À passagem, morreu na Pedrulha o senhor José Oliveira Gameiro. Foi, décadas a fio, funcionário da Faculdade de Letras da Universidade: antes, durante & depois do meu tempo. Pai da Luísa, morava na Rua do Plátano. Que descanse em paz.) 

IV 

“Junto d’um seco, duro, estéril monte (…)” 
– assim comecei o dia: lendo Camões (Canção X). 

As seguintes horas, naveguei-as em seguro pousio. 
Tenho comigo os livros, que me são fidelíssimos. 
Outubro tem sido parecido com os d’antigamente. 
Para minha agradecida surpresa, sim, tem sido. 

Fora, continua a comédia-triste da pandemia-made-in-China. 
Morreram mais dezasseis, mais 3270 novos infectados. 
Não se sabe quando isto acaba – nem se isto acaba. 
A contaminação não é só deste vírus-xis-pê-tê-ó. 

A contaminação é humanóide. Merda de espécie. 
Só que, entretanto, Camões. 


Morreu mais um homem na minha terra. 
Disseram-mo por saberem que me interesso. 
Vai o Tempo pontuando-se assim, empilhando corpos. 
Já não era novo, lá isso não, cumpriu seu prazo. 

Filmado, um outro indivíduo fala no televisor. 
Dizem-no “filósofo”, quando de frívolo não passa. 
Já quase rio disto, desta peçonha me(r)diática. 
Em muito boa-hora deixei tal carreira jornalisteira. 

O Benfica vai ganhando na Polónia (2-3). 
Nem a bola me sabe já a coisa apetecida. 
Camões, sim – o formoso zarolho é campeão. 
E a Vossa Senhora de Fátima também é campeã. 

Em Portugal, a eutanásia não chega a ser referendo. 
Esquisita gente, dona do sofrimento alheio. 
Esta é uma era que esquecerei: sem dor, morrendo. 
Deixo estes cadernos para que me cuspam na cova. 

VI 

A luz escarlate do reclamo alastra nos estores. 
É hora de ir jantando quem tem que o jante. 
Quase ninguém, porém, vem hoje ao restaurante. 
Negro, azul-escuro, cinza-esverdinhada – estas as cores. 

Vou pensando numa página inglesa que li. 
Um bocadito de pão, queijo-seco, azeitonas. 
Dizem que daqui do tasco são fufas as donas. 
Não sei nem saber quero do que se diz por aí. 

A luz escarlate 
etc. 

VII 

O caldo à nocturna hora sabe a teimosia existencial. 
É bom poder engendrá-lo, mesmo que (tão) a sós. 
Tenho estepes de tempo nestas cocções meditabundas. 
Melhor ainda se lá fora brama o vento lenhador. 

Tomado cálido em cônscia sabença do externo frio, 
o caldo anoitecido gasalha a vivência mesma. 
Atribuo-lhe a magia simples do sono prónuba & propedêutica. 
Assim me saísse o verso como me entra o caldo. 




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Canzoada Assaltante