(III)
(Penso que o poema alinhado no II imediatamente anterior não peca por grande obscuridade ou impenetrável hermetismo. Compus já milhares de outros bem mais para a terra-de-ninguém. Estimulou-me a estrutura, que aliás não planeei. Escrevi-o devagar, atento às possibilidades – tanto as do significante quanto as do significado. Enfim: feito. Está feito. Sigo rumo a outras possibilidades de enunciação. À passagem, morreu na Pedrulha o senhor José Oliveira Gameiro. Foi, décadas a fio, funcionário da Faculdade de Letras da Universidade: antes, durante & depois do meu tempo. Pai da Luísa, morava na Rua do Plátano. Que descanse em paz.)
IV
“Junto d’um seco, duro, estéril monte (…)”
– assim comecei o dia: lendo Camões (Canção X).
As seguintes horas, naveguei-as em seguro pousio.
Tenho comigo os livros, que me são fidelíssimos.
Outubro tem sido parecido com os d’antigamente.
Para minha agradecida surpresa, sim, tem sido.
Fora, continua a comédia-triste da pandemia-made-in-China.
Morreram mais dezasseis, mais 3270 novos infectados.
Não se sabe quando isto acaba – nem se isto acaba.
A contaminação não é só deste vírus-xis-pê-tê-ó.
A contaminação é humanóide. Merda de espécie.
Só que, entretanto, Camões.
V
Morreu mais um homem na minha terra.
Disseram-mo por saberem que me interesso.
Vai o Tempo pontuando-se assim, empilhando corpos.
Já não era novo, lá isso não, cumpriu seu prazo.
Filmado, um outro indivíduo fala no televisor.
Dizem-no “filósofo”, quando de frívolo não passa.
Já quase rio disto, desta peçonha me(r)diática.
Em muito boa-hora deixei tal carreira jornalisteira.
O Benfica vai ganhando na Polónia (2-3).
Nem a bola me sabe já a coisa apetecida.
Camões, sim – o formoso zarolho é campeão.
E a Vossa Senhora de Fátima também é campeã.
Em Portugal, a eutanásia não chega a ser referendo.
Esquisita gente, dona do sofrimento alheio.
Esta é uma era que esquecerei: sem dor, morrendo.
Deixo estes cadernos para que me cuspam na cova.
VI
A luz escarlate do reclamo alastra nos estores.
É hora de ir jantando quem tem que o jante.
Quase ninguém, porém, vem hoje ao restaurante.
Negro, azul-escuro, cinza-esverdinhada – estas as cores.
Vou pensando numa página inglesa que li.
Um bocadito de pão, queijo-seco, azeitonas.
Dizem que daqui do tasco são fufas as donas.
Não sei nem saber quero do que se diz por aí.
A luz escarlate
etc.
VII
O caldo à nocturna hora sabe a teimosia existencial.
É bom poder engendrá-lo, mesmo que (tão) a sós.
Tenho estepes de tempo nestas cocções meditabundas.
Melhor ainda se lá fora brama o vento lenhador.
Tomado cálido em cônscia sabença do externo frio,
o caldo anoitecido gasalha a vivência mesma.
Atribuo-lhe a magia simples do sono prónuba & propedêutica.
Assim me saísse o verso como me entra o caldo.
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