© DA.
20-12-2011, 16h40m30s
V
Escrevendo, frúo a desejada noite ao frio da estepe.
O meu real mais chão é todavia mais inclemente.
Compõem-no (vêde!) os plátanos ao pó da praceta.
Os plátanos – e os mortos que colecciono a granel.
A tristeza é menos temível do que a desesperança.
Não poder valer a alguém – sina má, hora pior.
Sei-me irrisório na cama emprestada anelando frios.
E ainda assim sinto faunas vivendo sem perguntas.
Em galeria perpétua, a vento miradouros.
Deitam quase todos a Coimbra, claro.
É sítio de já raros viventes, receio.
Não escasseiam desaparecidos, não.
Nem frases cortadas à faca calada.
Milagres & mil lágrimas, também.
Terreiro da Erva, Guarda Inglesa.
Por aí, perdendo passos rasteiros.
Pode supor-se por aí o moço Camões.
O recém-nascido Camilo Pessanha.
O imberbe António Nobre.
O flavo Antero em secular legenda.
E o meu Pai na Rua da Nogueira, em cama emprestada.
Estou nisto o mor da vida.
Adensa-se a bruma finimatinal.
Dobrado o meio-dia, é pétrea a praia.
Se não esta mensagem, outra nenhuma.
Entendamo-nos, não é difícil.
A minha luz é daqui, é esta.
A este aqui pertenço em moção.
Reitero a harmonia possível.
A idade entrou-me em força.
Não há como bani-la.
É da natura dos anos a perda.
Só não posso perder a fruição.
Não podemos dar azo ao acaso.
Aguentar ainda o corpo.
Saber um pouco mais.
Mas os plátanos não dormem.
Ei-los adejando décadas de areia.
Parecer-Vos-á talvez gratuito este patriotismo-local.
Seja – não me incumbe contrariar de Vós a voz.
Se posso, converso um pouco.
Alguém a dizer tenha algo.
Terrenos assuntos, locais, cúmplices.
Como quando soube do destino dos Pereiras.
Muita desgraça junta, disse-me Abílio.
Boquiabri-me por dentro.
Com tal não contava eu.
Tudo semelhava prosperidade a tal família.
Os plátanos não dormem – e o Diabo também não.
Aquilo entristurou-me a sério.
Ido Abílio, matutei na volátil volubilidade vital.
Ou: na constância da inconstância.
Atraio as más-novas, esparadrapo-as.
Tristonho feitio, é verdade, o meu.
Cabe-me aturá-lo, não é delegável.
Recupero certa finitarde com Ernesto.
Alaranjado açafrão toldava o ar.
Bonito instante, nós dois comentando-o.
Conversámos sobre aprazíveis temas.
Há quinze anos, o Ernesto morreu.
Ali mesmo, onde conversámos tão a bem.
Estas coisas assim, sem retorno.
Perdi demasiados anos com indiferenciada gente.
Poderia ter conseguido outras páginas.
Também isto é irretornável.
Não me vereis porém torcendo as orelhas.
É desfeito o malfeito & o por-fazer também.
Crime seria d-existir.
Sábado próximo, tenho concerto com a Leonor & Bach.
São os meus compositores preferidos, tenho sorte.
Faltam uma data de horas.
Melhor não contá-las, criar diversão pensativa.
Sim, não lamentar, não queixinhar-me,
Nada de babar sedas malévolas.
No pré-sono, mal nenhum em deitar-me na estepe.
Poderosa natura arquitecta, boreal às vezes.
Tundras & taigas, grécias & romas, dormir ou existir.
E a doçura de recordar uma página como se deveras vivida?
Sim, por aí quero seguir seguindo na senda d’ir sendo.
Em rapazito, ir pelos canaviais, atenção aos cães dos Pistôlos.
No Choupal, respirando o ar través os bambus.
Aquele cavalheiro de cerveja-preta & ovo-cozido.
Aquela dama talhada a marfim marmóreo, linhas puras.
Gravuras ele & ela, na pantalha da lembrança.
Em serenidade, esse par de desconhecidos habita-me.
Uma multidão anónima merece-me semelhante altar.
Já bem sabeis que nem todos os rostos são de vivos.
Não é exclusivo jeito da minha mente.
Real & impalpável andam de mãos-dadas sem esforço.
Aquela gente das passagens-bus, cacho de pretéritos.
Nas praias, os corpos dourando-se sem pressa.
Nos agros, debruçados em cultivo milenar.
Nas montanhas, em mimético granítico casario.
No meu ideário, alguma gente decente, outra imprestável.
Não esperes que a finitarde te adoce ou repugne.
Por a hora dela, terás ou não conseguido o verso.
Outra gente terá ou não aumentado o mundo.
Em lares-terminais, velhotes nem despedir-se podem.
Criam gatos cá fora, o pároco é franciscanamente votado a eles.
Como posso, mormente em verso, procedo a hodometrias.
Algumas sempre apuro no curso & em o corso de meus dias.
Entregas domésticas não faço já, desempreguei-me.
Agora os comboios fumam outras azulações.
Paredes esverdinham-se, erectas em água-parada.
Em bairro de abastados, rica pastelaria alegra palatos.
Há dez anos, fui lá uma vez, nada guardei precioso.
Dessa vez, falei com uma fulano de estéril gesto.
Satisfaz-me ter-me calado a tempo.
Já outros livros me urgiam em prol de minha salvação.
Preferi a Leitaria do Raul em académica dimensão.
Nenhuma obscenidade toldava certa inegável pureza do coração.
Uma camisola verde, de malha grossa, tom musgo-fresco.
E, na Arregaça, o rubr’azul do operariado mais genuíno.
Aí sim, aprendi lendo o ar, as laranjeiras, as manhãs diáfanas.
O mundo parecia acabado de criar, alegria não era palavrão-maricas.
Ser novo, divertir-me com cultistas, conceptistas, árcades joviais.
Ainda ando neles – mas menos ágil sinto a atenção.
Largas tardes davam para ambulações sem dor.
Passeios amplos, ensejos de paisagem lavada, alfazema perene.
Passarinhantes crianças sobre relva tratada, bem tratada.
O Zé Martins rindo-se azulineamente no almoço dos amigos.
O Luís escalhordando brejeirices hílares.
Sim, esse tempo em que ainda nos ríamos.
Ríamo-nos muito, andavam distraídos os anjos malignos.
Como pontos-de-interrogação traçados a neve, os cisnes.
Músicos-filarmónicos tomando o refresco à sombra da vinilatada.
Leite-&-bolachas no remanso da casa já vazia, dolorosa já.
Barro húmido, estatueta em breve, nos dedos do oleiro.
Algum prazer físico sem precisão de epistemologias.
Bonita & estúpida, recordemos Eulália Príncipe, do Tovim.
Bonita & manhosa, Laura Correia, do Norton.
O advogado chino-porcino atoardando inépcias oratórias.
O historiador-folclorista com coluna no pasquim.
O perfumista doido por pretas.
Aquele médico dos Covões com seis divórcios no rol.
Macaquear a vida é uma arte subestimada.
Estela & Júlia, manas floristas, viviam na Corpo de Deus.
Nicolau Sertório, que sofria de sportinguite-aguda.
Celeste Damas, que me apresentou a Eunice Canoa.
Leida Gregório, a quem apresentei Manuel Canas.
Quantos vivem ainda, que apurá-lo não posso?
Posso deveras frasear – Há trint’anos isto, há quarent’aquilo…
Assusta um pouco, fazê-lo – confesso.
Nem por isso desfavorecerei a minha unilateral verdade.
Estou certo de que me compreendereis – pois o mesmo fazeis.
Aí onde estive & aonde não volto: já minha morte começou.
Tenho-Vo-lo repetido à saciedade, estareis lembrados.
Voluntariamente ando nisto – mas também por outra coisa.
Essoutra coisa vem do meu mais profundo tempo.
Apresento-a como condição própria – se apropriada, não sei.
As pessoas seguem por seus carris, disso cônscias ou não.
O livre-arbítrio é verídico, mas tem condicionantes.
Liga-as a humana sina, não-raro tenebrosa.
Outras, porém, bem luminosa.
Iço o olhar, é glauca lá fora a hora vesperal.
Há muito quem ache triste, não eu.
Não me é porém dia de desconfinamento.
Quinta-feira & sábado próximos, sim, sê-lo-ão.
Até lá, a escrita insiste em demanda de luz própria.
No terreno, os demais humanos fazem, desfazem, refazem.
É o formigueiro-social em seu esplendor costumeiro.
É a existência perfunctória, não-raro desassisada.
Também porém se dá o inverso.
O homem que repara o chão da rua.
A enfermeira que pensa o joelho do menino.
O professor dedicado subindo a classe.
O fotógrafo trabalhando a favor da memória-futura.
O enamorado telefonando a seu bem bípede.
O veterinário por vocação.
O polícia de guarda à paz dos velhos que vivem a sós.
Arquétipos são de um civismo ameaçado todos os dias.
Por mim, em minha patente inutilidade, projecto estepes.
Adormeço ao frio – como já preparando o próximo,
derradeiro afinal,
verso.
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