15/12/2020

VinteVinte - 155 (conclusão com IV-VII)

 


New York Windows (1961)

155.

 

TUDO É RIO

 

Coimbra, sexta-feira, 2 de Outubro de 2020 



IV 

    Roberto Jorge comeu, vestiu-se & calçou-se de ofícios de recurso vários: numa fundição, numa papeleira, na venda de leguminosas, como guia de marinheiros por antros prostibulares, como jogador de lerpa. Experimentou o estrangeiro, que em toda a parte odiou: a vil Marselha, a escura Sheffield, a miasmática Roma, a indevassável Odessa, a manhosa Istambul. Teve mulher & um infante algures na Bélgica, que pronto abandonou sem olhar para trás. 
    Conheci R.J. num bar miserável de Buarcos. Eram então os sobrevalorizados anos de 80/XX. Eu estava casado com uma enfermeira do Hospital da Gala, Elvira se chamava, era engraçada & positiva: minhas duas vezes antónima, portanto. Ele vivia então de expedientes com camionistas de longo-curso. Nada de drogas, porém, apenas coisitas import-export de somenos: calçado & vestuário contrafeitos, maquinaria ligeira, bebidas-brancas. 
    Eu já então escrevia verborreias impublicáveis como esta que lêdes. Roberto Jorge, não sei dele, desapareceu. Eu também – mas aqui estou, enfim, sem remédio & sem Elvira. 


Não nos furtemos a rir ante o cómico mundo desvairado. 
Ante ele & dele riamos à fartazana sem pudor qualquer. 
A outra coisa a suposta realidade não convida. 
Pelo riso escarninho nos livramos quase da global idiotia. 

Se ao televisor concedo perdidos minutos, rio-me com siso. 
Topo perfeitamente a manipulação bigbrotheriana da récua. 
Aprecio particularmente os comentadeiros de tudo & mais alguma coisa. 
Portugal tem mais ogres especialistas do que seres especiais. 

Todos morrem(os), enfim. Ah ah. Eh eh. 

VI 



    Dois indivíduos com blusões vermelhos em zona verde. Juntam-se-lhes outros, seis ao todo. Armam duas tendas amplas & amarelas. Preparam-se para a noite. A Lua já preside à celeste estepe. Delimitam o ponto da fogueira. Partilham provisões embaladas, ceiam. Arrefeceu um pouco. Os mais moços ficam ainda um pouco à conversa. Os dos blusões encarnados recolhem-se para dormir. Já não remuniciam o lume, que vai adormecendo. A fadiga natural faz com que eles se recolham também. Para geral surpresa, a brisa torna-se adulta, põe-se a vozear no arvoredo do parque. Cerração nublada oculta a Lua, dá de chuviscar. Vale que a lona é bem encerada. Não é de gravidade o episódio. Volta a estiar quando todos dormem já. Os dois guias são os primeiros a despertar. Alinham os necessários para o pequeno-almoço, refeição que antecede a partida. É a última manhã da expedição. A noite sinalizou lealmente o fim do Verão. Tudo acaba. Nem tudo recomeça. 

VII 

Conheci uma pessoa de amargura muito enraizada. 
Não conseguira a simplicidade, especulava de mais. 
Digo-o hoje assim – mas eu era muito novo, pouco sabia. 
Pouco sabia de amarguras ou simplicidades. 

Conheci outra que percorria o nosso País sem descanso. 
Uma urgência a arrastava, que definir não podia. 
Tirou milhares de fotografias ao território que nos define. 
Suponho que por aí ainda andará obturando a luz. 

Nem toda a gente se me faz verso, acontece só com alguma. 
Se ando à solta pela Cidade, escrevo estranhos, ignotos seres. 
Confinado ao apartamento, minto meias-verdades quás’ingénuas. 
Também eu não consegui ainda a simplicidade. 

Ainda trabalho muito minúcias decerto vãs. 
Discernir o essencial não é vituperar o acessório. 
Gosto pouco de falar – prefiro dizer. 
E a dizer prefiro escutar, apre(e)nde-se sempre algo. 

Um casarão cor-de-pomba com largo portão escarlate. 
Família toda ela agricultora desde os primeiros monarcas. 
Já ali fui recebido com terrena cortesia, fui sim. 
Um dos rapazes, como eu hoje avelhentado, foi meu condiscípulo. 

Tendo talvez a justificar-me em excesso, talvez sim. 
É a velha culpa, que o catolicismo até a ateus inculcou. 
Nada enfim que não possa ser intimamente tolerado. 
Nada enfim que os anos não piorem, se calhar. 

Apareceu a boiar no rio o cadáver de um louco inócuo. 
Coimbra sempre foi bem fornida de parelhas figuras. 
Julga-se não ter havido crime na origem da epifania. 
Amargura uns, loucura outros – tudo é rio. 

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Canzoada Assaltante