31/12/2020

VinteVinte - 171 (conclusão: XIII-XV)

na posse da certeza inelutável:

a de morrer quando o entardenoitecer do mesmo dia

desse a primeira hora na Rainha Santa



    XIII

    Houve outrora na casa senhorial da quinta uma senhora de reservada existência & hermética filosofia. Enviuvando, pareceu-lhe bem vender tudo, desde que com vantagem justa. Obteve o que queria – e a pronto. Tudo junto, dava para dez existências iguais àquela com que se propunha aguentar até à morte.
    Tomou hospedagem numa residencial que confrontava o Mondego. Dispunha de quarto, sanitários privados & saleta-de-leitura. Fazia fora as refeições, quase sempre na Casa-de-Pasto Madalena, que por décadas honrou as cercanias de Santa Clara.
    Sem filhos, sem pais, sem dependentes, sem sócios – restava-lhe a totalidade de si mesma, o que costuma ser suficiente para quem, na certeza de morrer, se vê vivendo até lá. 
    Associou-se à Casa dos Pobres, que propinava, não anual mas semestralmente, com donativo em géneros alimentícios, medicamentosos & de vestuário/calçado. Igreja, não ajoelhava. Homens, não quis. Mulheres, também não.
    Uma terça-feira de Março, despertou às cinco da manhã na posse da certeza inelutável: a de morrer quando o entardenoitecer do mesmo dia desse a primeira hora na Rainha Santa. Não se turvou. Levantou-se, tomou banho frio, vestiu-se de verde com lenço grená, desjejuou na pastelaria ali ao pé do Portugal dos Pequenitos. Só então a assaltou a incerteza – que esta era: que fazer das horas derradeiras de última luz?
    Ainda hoje não sei.

    XIV

    Dália, excelente Dàlita: 

    Por cá, como por toda a parte: pânico de uns, indiferença de muitos, morte de demasiados. O microscópico bicharoco made-in-China continua a cevar-se a eito, sobretudo (para já) entre os mais velhotes. 
    Literatura? Passa-se nada. É mania que morreu. Vende-se, é certo, muita livralhada – mas não nas livrarias. Nos correios & nas hipermercearias, são aos montes os lixos impressos, máscaras, eles também, conformes aos tempos correntes. Porcarias tipo auto-ajuda à americanóide, patranhas zodíaco-espiritistas, “romances” à código-da-vinci, imitações de imitações, merda de merda.
    Resta-me, magnífica Dàlita, ir lendo & relendo sem tréguas a biblioteca que em anos melhores ajuntei. Isso – e ir vivendo ao frio não do dia-a-dia mas do dia-por-dia, por mais viral.
    E contigo, bonita Dália?
    Que me dizes?
    
    Abraça-te a ti, a teu excelente marido & a teu belo filho,

    o

    X.P.T.O.

    (XV)

    (Na época em que já escrevia quase todos os dias, o mundo já se deixara de literaturas há muito. Parece-me que sim, não sei se acerto ou erro, embora de todo não desacerte. Enveredei, pois, por uma actividade maninha & de antemão condenada às poeiras inexoráveis do esquecimento. Não faz mal – repito-mo à maneira da raposa virando a cauda às uvas. Mas de facto não faz. Mal nenhum. Nem bem, graças-a-deus.)

2 comentários:

rodrvic@gmail.com disse...

Deste que acaba a minha gratidão pelas leituras diárias. E para o próximo que inicia, os melhores votos.

Daniel Abrunheiro disse...

Sou eu quem agradece, RodrVic.
Iguais votos para 2021.
DA

Canzoada Assaltante