IV
Sim, a luz toca alguns em plena forçosa obscuridade.
Habitam esses mais do que apenas planisferiamente.
Tratam de compreender devagar a rapidez do tempo-em-vida.
Acabam desembaraçando-se de néscias teologias beócias.
E, partindo para o Nunca-Mais do Poe, cá ficam, secretos.
Lugar-ao-sol neste vale-de-lágrimas?
Mais príncipes, e lunares, neste morredouro-de-pobres.
A verdade é haver escapatória à mineral resignação.
Os iluminados iluminam – mesmo quando invisíveis.
Talvez mais até quando invisíveis, fantasmáticos.
Há, pelo menos, que entrevê-los, pelo menos alguma vez.
V
Nomes, datas, inscrições, pergaminhos, petrificações.
Francisco, André, Virgílio, Luiz, Manuel.
Em alguma casa, tomos conservam a experiência.
É sono de que gaiatamente se pode despertar.
Cada poente o confirma em glória madrigal-matinal.
(VI)
(O frio da noite de Lisboa é diferente do de aqui.
Ou eu sou diferente ao frio de lá, que hoje recordo.
Nem prémio nem penitência me levaram a ele.
Nem castigo nem troféu me trouxeram de volta.)
VII
Há as casas, as relíquias guardadas nelas pelo cão da lembrança.
Há a carga de lenha vinda hoje, que é preciso afeitar amanhã.
Uma província à maneira de Flaubert esperando na estante.
Bacias & bidões pelo pátio pelos mínimos resquícios de chuva.
O velho cavalo na corte que se segue à casa-do-forno.
Para variar, um padre decente ungindo os padecentes.
Em ruído de madeira rasgada, estala a trovoada, Deus a ralhar.
Segue-se o instante forte da chuvada, arvoredo eufórico.
Há as mulheres, a louça mais antiga, a naftalina fresca.
É azul ao crepúsculo o fumo dos vizinhos, deitam-se cedo.
Uma pessoa pensa, hesita, decide, pensa que decide.
Nunca mais uma frase perdida nos doerá tanto.
Soergue ao de leve a cortina da janela da cozinha.
Esta esposa veio da cidade, talvez sofra por aqui o lá.
Fritam peixe fluvial, varre a igreja a velha Ernestina.
Pouco mais é do que capela, mas queremos-lhe bem.
Há as vias-térreas que nós caminhantes abrimos na mata.
Há a ponte de pedra, anterior até ao Tempo & a Deus.
Temos o ribeiro por tesouro equivalente ao Sol.
Temos as cores indicando os nomes das coisas, visíveis ou não.
As histórias continuam a vigorar enquanto modelos.
Um cão conta como pessoa própria na galeria local.
Não deixámos os da Câmara interditarem o fontanário.
Uma tribo ladra tentou saquear-nos – nunca voltará: sepultámo-la.
Há na praça o cinturão de plátanos, alimentam-se de poeira.
Bancos de pedra afrontam o casario térreo.
É amargo que chova já tão pouco, o temporal enriquece-nos.
Quando as estações eram quatro, o povo era mais robusto.
A ermida na cumeada ora a santo & a santa.
Casou-os a bondade para com a natura: São Décimo & Santa Nova.
Grilos, cegarregas, pirilampos & morcegos dividem Sol & Lua.
A forma local de amar é manter silenciosa a nudez.
Teixeira de Pascoaes mais bem nos diria do que isto assim dito.
Tal é certo – mas tal não pode ser, já ele passou o Bojador.
Há que seguir estas linhas nesta linha, são quão podemos.
As casas, como privados santuários, guardam as futuras criptas.
As passadas também, que nos sonhos acordam quem jaz.
A humildade indignada das galinhas assemelha-se-nos.
Não odiamos os lobos, só os da Câmara, por estrangeiros.
Falamo-nos ao entardenoitecer, pouco é preciso proferir.
Não só os campos – também a horta amanhamos nossa.
E cada horta se gemina com jardinete intramuros.
À terra vamos pedindo emprestado, que em corpo pagaremos.
Inventamos nomes para a cor da flor & da sombra que cria.
Prósperas. Favorecidas. Felizes. Clemências.
Despedidas. Lentas. Dignas. Passifloras.
Harmonias. Andores. Malvasias. Plenas.
Hidras – que são as horas.
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