20/12/2020

VinteVinte - 162 (I)

© Álvaro Portugal


162.

 

MADRETERRA & COMPANHIA ILIMITADA

 

Coimbra, domingo, 11 de Outubro de 2020 (I-II)

Coimbra, segunda-feira, 12 de Outubro de 2020 (III-XIX)

 


    I

    Em uma das zonas mais antigas da Cidade, as mais velhas putas andam ao ataque. Três tabernas fornecem-lhes alvos bebidos. Andam a soldo de uma indústria inexorável. A modernidade pode ladrar o que & quanto quiser – a Roda rodará sempre.
    São fodas tristes, baratas, velocíssimas. Os mais desamparados aparecem, são recrutados para gaiolas de pensões decrépitas, nem chegam a despir-se. O soldo da foda inclui a taxa do quarto.
    Aos domingos, a tristura é ainda mais mandibular. Há mais putas que se suicidam, quando é domingo – e o futuro é uma anedota mais obscena do que comer por o que se fodeu. 
    Sei alguma coisa deste mundo entre a traseira do extinto Tivoli & a extinta J.L. Escola de Dactilografia.
    Quando havia invernos, era uma das minhas voltas mais favorecidas. Observava, de costas para a Império ou para o Hotel Bragança, o tráfico. As senhoras do ofício juntavam algum, iam ao Café Angola para comer bolos-de-bacalhau, sandes de presunto, bebendo cerveja-preta & vinho com gasosa.
    A literatura jorrava, fustigada embora pela gélida respiração do Mondego à face da Estação Nova (Coimbra-A para estranhos à Lusa Atenas). Parecia câmara-lenta-a-preto-e-branco. E era-o & é-o na minha lembrança.
    Pouquíssimas encontram arrimo & reforma, ao cabo de um milhão de homens. Cirrose, tuberculose & sífilis são mortíferas remunerações da maioria. Vêm das catacumbas romanas, traçam nas paredes o ominoso peixe cristão. Vêm de Celorico, de Almeida, da Guarda, de Montarroio, de Pontevedra, de Huíla, do Pará. São siamesas por condição. Vão-se atarracando, vencidas pela gravitação lunar. Um dia, acordam transparentes: nem ao espelho se revelam ou descobrem.
    Da outra Banda, têm a simpatia da Senhora Rainha Santa Isabel de Aragão. Dela & da Dona Inez de Castro.
    Chamava-se Ana Maria Madreterra, uma que conheci. Era da classe dos 350 escudos (50 para o quarto na Rua da Sota). Muito meiga, quase tímida, cometia o pecado imperdoável de sentir prazer com o que lhe infligiam. Boa porção do meu primeiro best-seller foi gasta com jantares & ceias & pequenos-almoços para ela, só para ela. Eu era casado – mas ninguém jamais soube dessa fonte de parágrafos tão minha, só minha. E mais não convém recordar. 



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Canzoada Assaltante