130.
OURIVESARIAS & AVIÁRIOS & ODES & ANTROS
Coimbra, sábado, 29 de
Agosto de 2020
(...)
II
Ainda esta tarde existe que nela existo.
Algodoam o azul massas níveas alteadas.
Não é excessivo o calor, o corpo funciona.
Persigo em meu poço a água refrigéria.
(...)
Finas hastes de ouro aparelham aquelas lentes:
próspero senhor as traz ao rosto já decano.
Foi talvez jurista ou remediado professor.
É de bonitas mãos antigas, o cavalheiro.
(...)
Tenho revisitado em música imagens leais.
Toda a gente se volve ilha, é da Lei.
A lembrança faz de cada um tio-patinhas-de-si.
Ourivesarias & aviários & odes & antros.
Não sei alguma vez Rilke soube da filantropia
que para com ele (& outros) teve, em dinheiro,
o profundo Wittgenstein, esse génio indefesso
que tratou a sabedoria por tu & d’olhos-nos-olhos.
Não serei Vosso freguês nem Vosso poeta.
É demasiado tarde, avaro sou de minha tristeza.
Victor de pequenino estrito estreito reino,
não vou mais às danças, fatiga-me o treino.
Estou, por assim dizer, in-praxis.
(Pode o latinório estar mal, não a asserção.)
Um jardim acompanha meus passos.
Vou de cerrados olhos, norteia-me a desorientação.
Amo-te em-ausência, pois que te desconheço.
(A prótese-dentuça daquela senhora amareleja.)
É o meu ter-tido-20-anos-que-te-beija.
E sim, Ludwig é génio indefesso.)
Pensais decerto ser paleio meu não m’arrecear da morte.
Créus sois de transviada cagança.
Amo quem amo: nem todos vivos.
Na morte, não amarei, serei cósmico lixo. Vós não?
O pequeno Marcel de miraculosa atenção.
O jovem Gabo tiritando em Bogotá.
A cama de leite da pequenina Marguerite.
E a palavra certeira da catalã Mercè.
São o meu povo.
Levam-me pela mão.
Sou novo de novo.
Dou-lhes total atenção.
Cultivei a rosa.
Tornei-a sintáctica.
A vida é maravilhosa:
como a matemática.
Curso mas não corro.
Já não corro, devim lento por multianuário.
Joguei no União com o Januário.
Vivo ainda, ainda não morro.
Gostaria de residir onde a laranjeira treme ao vento.
Viver da horta, ter gestos seguros mas mansos.
Não ser de minha morte o mesmo monumento.
E não matar criação, nem porcos nem gansos.
Pertenço a um escol-de-arrebol-escumalha.
Bordo cemitérios, de lápides ledor.
The Razor’s Edge é O Fio da Navalha.
Uma cegueira bonita? Chama-se amor.
Ainda a noite me será estelar manta?
Sonha alguma velha mulher com a minha juventude?
Terei eu mais usado do que ousado a vida?
(Uma resposta certa habilita a cruzeiro-às-caraíbas.)
“Saí daqui às três da manhã,
eram as quatro da tarde já estava em casa.”
E sorri, muito encarnado, da própria piada
o bigode do sósia (maneta & tudo) de Wilhelm II.
(...)
Esta senhora, de ossatura enxuta,
diz-se nascida em Dezembro de 1955.
Não gesticula ademanes de puta.
Mas só de uma orelha pendura o brinco.
Postula ela agora recordações
da antiga Baixa de Coimbra exaurida.
É ela viúva do extinto Simões
que tinha uma loja muito concorrida.
Coisitas. Alfim, coisitas.
Talvez fiquem bem em (em-em-em) livro.
Quando o meu futuro se chamar outrora. Pepitas.
Ranços de ouro. Ter-sido-vivo.
A laranjada era Superfresco, Bussaco, Serranita.
Depois já era Sumol – e até Trinaranjus.
Havia o pacóvio carrasco Franco em Espanha.
E nós fomos Salazar mijando às surdas na sacristia.
Digo-Vos a minha clara (não-esclarecida) opinião:
– SOU A FAVOR DA INVENÇÃO QUE EXULTE.
Cago d’alto para os Andrés Malraux & Breton.
E ao Torga, ponho-o na sopa-dos-pobres da versalhada.
(...)
Non. Pas. Ou, como em Pessoa, Chevalier de Pas.
Esse quarentão-Pessôa (com circunflexo natural).
Os barbudos-do-25 cravando a todos o fático pá.
Função-fática, diz Jakobson, ó-pá-ó-pá-ó-pal.
(Espero tão-só o verso que ruybelamente me inscreva
no outono necessário de quem viva do que escreva.)
Ademais: praias-da-Normandia
naquele 6-de-Junho-1944, rija madrugada-dia.
Quando (se) algum dia me recolher às tílias sombras
& receber das aves a ominosa murmuração,
serei contigo (ninguém) tipo luz-em-pedras,
que aliás escusam explicação.
Quando relermos o claro Georges Duby das catedrais,
ou Afonso Domingues, velho operário,
teremos por espelho só nada nem mais
que o rosto-próprio-cristo-sem-calvário.
(E agora, poeta, quando sais disto?
Dormindo, que afinal não se apazigua?
Vais sem solenidade ser remetido à rua,
que de réprobo não cuida, por malquisto?)
(...)
Tenho defronte uma máquina-recordatória.
É prensa a gaja, funciona por imaginação.
Pertenço sem ser criado à moratória
que obriga (mas não abriga) à fraquita condição.
Apostas uma vez, talvez não percas, isso já não sei.
A minha pele é já capa de livro.
Fiquei mais rico de cada vez que dei.
E quando recebi, não sei, eram comigo
o rumorar da laranjeira no alheio pátio,
a coragem da penedia ao indefesso vento,
uma pessoa, pó, ser só de si mesma sítio
& nem por morte-d’alma um lamento.
E se eu, sem ego-idolatria tôla, Vos garantira
que sou (sem consumos fora) uma não-mentira?
Verdade é esta: a PaterMaterCasa não volverei:
infância é ter sido príncipe que não chega a rei.
A questão ainda única chama-se Salário.
A pessoa pode ser muito boazinha – mas o Salário.
Aquilo de comprar batatas, mulheres & livros: o Salário.
Ou: o Sacrário.
Ou então:
Por que razão a minha ortografia se não demite
Do Senhor Professor que me a transmitiu?
Por canina-humana lealdade, Dom Elias Rodrigues Faro.
(...)
Namorei, longe-tão-longe-de-hoje, uma menina.
Florescia dela a estesia naturalíssima.
Ela casou outro, foi fertilíssima.
Eu colecciono cegos que pedem à esquina.
Devera eu ter al feito diferente?
Talvez sim – mas não fôra eu a mesma gente.
eu ente desta grei que, por sangue ou leitura,
faz de cada achado o antónimo da procura.
Até biliarmente sabemos cálculos as pedras.
(E não, nunca fui contigo a Torres Vedras.)
E ali, perto, nesta mesma esplanada,
estranha-me um homem que eu escreva tanto nada.
(...)
A que não regresso?
A que dúvida nenhuma?
A que lápis-dos-chineses devo, egresso,
ser uma pessoa-alguma: ou nenhuma?
A que não regresso?
A que dúvida nenhuma?
A que lápis-dos-chineses devo, egresso,
ser uma pessoa-alguma: ou nenhuma?
(...)
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