99.
DE GATO A CÃO
Coimbra, segunda-feira,
13 de Julho de 2020
I
Rompeu
já o dia novo. Disseram (ou ameaçaram) ontem que a semana vai ser tórrida.
Merda – resmunguei eu sem abrir a boca. De facto, já nem as madrugadas aliviam.
Estiola-se. Eu estio: não dormi nem um minuto da noite, acordo sem ter
adormecido ou sonhado. Dormirei aos farrapos durante o dia, claro. Há-de
vencer-me um cansaço estéril, afogado & afogueado. Faltam seis para as
sete, a minha pressa é nenhuma. Desde as cinco na cozinha lendo o Curzio
Malaparte de Sangue e Prisão (n.º 53 da Colecção Dois Mundos da
Livros do Brasil, tradução portuguesa de Maria Manuela Gonçalves, s/d). Algumas
passagens muito belas. Malaparte viveu de 9 de Junho de 1898 a 19 de Julho de
1957. Viveu muito para o pouco que existiu. Gosto de lê-lo, já o li antes, vou
continuar a fazê-lo. E como se por brincadeira, já vai quase meão o Julho.
II
Cabeç’adentro
há maravilhas & horrores
Ser-se
humano é árduo castigo
Infinita
literatura é rio indefesso (*)
A
morte não é uma hipótese, ah pois não.
Jogam
às claras impotência & bravura
Demora
uma vida aprender a viver
No
fim é certo dar resto-zero a conta
E
no entanto algumas pérolas consolam.
Esta
manhã, a singela pureza da rôla
A
pura singeleza da rôla voando na manhã
Traçando
ia contracéu transparente linh’aérea
Aqui
a guardo, maravilhosa, total, sozinha.
(*)
Indefesso não é gralha de indefeso – é indefesso mesmo o que
quero dizer.
(III)
(Mantenho
a casa fechada todo o não-santo dia.
O
calor é uma besta sem ideia de vida.
A
vontade de viver desce a nadires mínimos.
Só
se pode estar entre azulejos no escuro.
O
meu Pai era entre azulejos no escuro.
A
minha Mãe não, era grata ao Sol a minha Mãe.
A
estes dois, mantenho aberta a casa todos os santos-dias.)
IV
Todos
os dias me pugnam dentro ideias contrárias.
É
um marulhar incessante adentr’ o pensamento.
Faço
sempre por sair esclarecido de tais pugnas.
Com
os anos, sei construir ferramentária para tal.
Pessoas
que fora se fecharam, fechadas vão ficar.
Gente
a quem uma palavra pareça justa, é liberta.
Trata-se
de ter, não razão democrática, mas uma razão utente.
É
tudo a exigir a uma pessoa: uma razão em uso.
Devagar,
a morte torna-se repentina.
É
essa a Lei, escapatória não tem.
Não
a temo, não a tremo.
Não
é por valentia, não é resignação, é lucidez.
Revisito
muito dimensões temporais apostas.
Sei
o que fazer delas com o que elas me fazem.
A
principal coisa a fazer – chama-se Literatura.
Falo
por mim, isto não é ciência, isto sou eu.
Não
espero – nem já quero – notícias de fora.
As
de dentro bastam & sobram, garanto-Vo-lo sem soberba.
(Ou
com soberba, tanto faz.)
Deu-me
hoje p’ra ser mais claro que de costume.
Gostaria
de dormir a próxima noite.
A
pretérita, não a dormi, pensei muito.
Rompi
com as aves o novel dia, fui uma delas.
Li
páginas de um italiano há muito arquivado.
Alimentei
o Gato, amparei-lhe o sono.
Mal
espreitei o esparso mundo além-fenestra.
É
possível que espere alguma coisa, mas a alguém não.
É
bom conseguir dormir, acordar muito cedo, lavar o rosto.
Todos
os anos são perdidos, estes penúltimos dez mormente.
Mal
(já) não faz tal todavia, diz o melro à cotovia.
É
fácil trair esse mau tempo: basta abrir Pessanha.
Cesário.
Osório. Sena. Oliveira. Nemésio. Camões.
A
vida felizmente etcetra-se muito.
É
só abrir as asas, pôr música, fruir a Beleza.
Podendo,
criar alguma sem olho no negócio.
Rejeitar
é uma arte que convém ter à mão.
Depurar,
outra; reparar, às vezes.
Disponho
a minha vida em fascículos paginados.
É
a minha fortaleza, o meu bastião, a minha cidadela.
Não
sei a próxima noite, quase sei a minha vida.
V
Receio
que a vida futura me não interesse muito.
Prefiro-lhe
a atenção às coisas continentes de ideia.
Imagens
mormente – e, destas, mormente as verbais.
Como
essa em que vou com o meu Cão ao monte.
Acima,
escrevi receio mas é força-de-expressão.
Não
é receio de medo, temor, cagufa.
O
porvir porvém da mecânica das marés.
E
o meu é tão-só quanto deixar escrito.
Vou
ao meu monte com o meu Cão.
Respiramos
ampla, profunda, funchalmente.
Funcho
& espargo silvestram o terreno nosso.
Já
então me recuso a profecias nado-mortas.
Mantenho,
às vezes duramente, esta atitude pró-vital.
Conhecendo-me
mortal, é tudo menos difícil.
Passo
um trapo limpo pelas coisas arredias.
E
eis que me vejo dono – e cão – de meus dias.
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