02/11/2020

VinteVinte - 99




99.

 

DE GATO A CÃO

 

Coimbra, segunda-feira, 13 de Julho de 2020

 

I

 

Rompeu já o dia novo. Disseram (ou ameaçaram) ontem que a semana vai ser tórrida. Merda – resmunguei eu sem abrir a boca. De facto, já nem as madrugadas aliviam. Estiola-se. Eu estio: não dormi nem um minuto da noite, acordo sem ter adormecido ou sonhado. Dormirei aos farrapos durante o dia, claro. Há-de vencer-me um cansaço estéril, afogado & afogueado. Faltam seis para as sete, a minha pressa é nenhuma. Desde as cinco na cozinha lendo o Curzio Malaparte de Sangue e Prisão (n.º 53 da Colecção Dois Mundos da Livros do Brasil, tradução portuguesa de Maria Manuela Gonçalves, s/d). Algumas passagens muito belas. Malaparte viveu de 9 de Junho de 1898 a 19 de Julho de 1957. Viveu muito para o pouco que existiu. Gosto de lê-lo, já o li antes, vou continuar a fazê-lo. E como se por brincadeira, já vai quase meão o Julho.

 

II

 

Cabeç’adentro há maravilhas & horrores

Ser-se humano é árduo castigo

Infinita literatura é rio indefesso (*)

A morte não é uma hipótese, ah pois não.

 

Jogam às claras impotência & bravura

Demora uma vida aprender a viver

No fim é certo dar resto-zero a conta

E no entanto algumas pérolas consolam.

 

Esta manhã, a singela pureza da rôla

A pura singeleza da rôla voando na manhã

Traçando ia contracéu transparente linh’aérea

Aqui a guardo, maravilhosa, total, sozinha.

 

(*) Indefesso não é gralha de indefeso – é indefesso mesmo o que quero dizer.

 

(III)

 

(Mantenho a casa fechada todo o não-santo dia.

O calor é uma besta sem ideia de vida.

A vontade de viver desce a nadires mínimos.

Só se pode estar entre azulejos no escuro.

O meu Pai era entre azulejos no escuro.

A minha Mãe não, era grata ao Sol a minha Mãe.

A estes dois, mantenho aberta a casa todos os santos-dias.)

 

IV

 

Todos os dias me pugnam dentro ideias contrárias.

É um marulhar incessante adentr’ o pensamento.

Faço sempre por sair esclarecido de tais pugnas.

Com os anos, sei construir ferramentária para tal.

Pessoas que fora se fecharam, fechadas vão ficar.

Gente a quem uma palavra pareça justa, é liberta.

Trata-se de ter, não razão democrática, mas uma razão utente.

É tudo a exigir a uma pessoa: uma razão em uso.

Devagar, a morte torna-se repentina.

É essa a Lei, escapatória não tem.

Não a temo, não a tremo.

Não é por valentia, não é resignação, é lucidez.

Revisito muito dimensões temporais apostas.

Sei o que fazer delas com o que elas me fazem.

A principal coisa a fazer – chama-se Literatura.

Falo por mim, isto não é ciência, isto sou eu.

Não espero – nem já quero – notícias de fora.

As de dentro bastam & sobram, garanto-Vo-lo sem soberba.

(Ou com soberba, tanto faz.)

Deu-me hoje p’ra ser mais claro que de costume.

 

Gostaria de dormir a próxima noite.

A pretérita, não a dormi, pensei muito.

Rompi com as aves o novel dia, fui uma delas.

Li páginas de um italiano há muito arquivado.

Alimentei o Gato, amparei-lhe o sono.

Mal espreitei o esparso mundo além-fenestra.

É possível que espere alguma coisa, mas a alguém não.

É bom conseguir dormir, acordar muito cedo, lavar o rosto.

Todos os anos são perdidos, estes penúltimos dez mormente.

Mal (já) não faz tal todavia, diz o melro à cotovia.

É fácil trair esse mau tempo: basta abrir Pessanha.

Cesário. Osório. Sena. Oliveira. Nemésio. Camões.

A vida felizmente etcetra-se muito.

É só abrir as asas, pôr música, fruir a Beleza.

Podendo, criar alguma sem olho no negócio.

Rejeitar é uma arte que convém ter à mão.

Depurar, outra; reparar, às vezes.

Disponho a minha vida em fascículos paginados.

É a minha fortaleza, o meu bastião, a minha cidadela.

Não sei a próxima noite, quase sei a minha vida.

 

V

 

Receio que a vida futura me não interesse muito.

Prefiro-lhe a atenção às coisas continentes de ideia.

Imagens mormente – e, destas, mormente as verbais.

Como essa em que vou com o meu Cão ao monte.

 

Acima, escrevi receio mas é força-de-expressão.

Não é receio de medo, temor, cagufa.

O porvir porvém da mecânica das marés.

E o meu é tão-só quanto deixar escrito.

 

Vou ao meu monte com o meu Cão.

Respiramos ampla, profunda, funchalmente.

Funcho & espargo silvestram o terreno nosso.

Já então me recuso a profecias nado-mortas.

 

Mantenho, às vezes duramente, esta atitude pró-vital.

Conhecendo-me mortal, é tudo menos difícil.

Passo um trapo limpo pelas coisas arredias.

E eis que me vejo dono – e cão – de meus dias.  


 

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Canzoada Assaltante