142.
LUNIFICAÇÃO EM MARCHA
Coimbra, quarta-feira,
16 de Setembro de 2020
I
A prima manhã da derradeira metade de Setembro foi doce.
A ferocidade térmica dos recentes dias não vingou hoje.
O corpo é grato ao alívio da besta, por mais transitório.
Pode agora sofrer outras coisas da crescente entropia.
Exemplo: um cais breve com barcas azuis, roxas, verdes.
Outro: três homens a vau em rio gelado, duro arvoredo.
Enquanto vigio, a moção de tantos mundos quantas pessoas é.
Como o patriarca dos Agualta girando por seus domínios.
Faz-lhe companhia Santos, caseiro de toda a quinta.
É indeterminável o ano, mas sei que foi em Setembro.
Rasgaram algumas colinas, franquearam o trânsito.
Agora os pesados rugem rumo às raias espanholas.
Uma empresa poderosa assenhoreou-se das madeiras.
Os pequenos-cultivadores vivem da horta ainda porém.
Aplico a idade que me resta à notação legível, inócua.
Correr, não corro; bradar, não brado; escreviver, escrevivo.
II
Um que era para ter sido Raul não se fez tempo usado.
Permanece na inocência impreterível dos nem-nascituros.
E no entanto a Rua criou muitos filhos de muita gente.
A Escola encarava as Fábricas: carne-para-canhão.
Esse nem-Raul, em limbo, não colheu o espargo-silvestre.
Não perfumou a boca de bolacha-americana ante o Atlântico.
A vida poupa a quem à morte se não oferece.
III
Lunificação da Terra em marcha.
O aquecimento-global é genocida.
Os anos por contar descontar-nos-ão.
Seremos cremados sem transigência.
Tirante isso, tudo bem, obrigado.
IV
Raul:
Escrevo-te na noite de Coimbra, onde não chegaste a nascer porque não, enfim, não calhou. Safaste-te de coisa pouco boa. Este futuro não vale um chavo. Mundo poluto, natureza maculada, calor de fornalha-crematória a cada virar-de-esquina. Até em casa se estufa a condição. Os Alpes, os Andes, os Pólos perdem as mantas, a cor, os glaciares. Já não gelam no Japão os lagos. As próprias aves de telhado a quem atiro arroz & pão – já não aparecem tanto, não sei se fritas em pleno voo pela inclemência intolerável destes estios de onze meses ao ano. Vivemos precariamente, estiolamos sem remédio, penetra-nos a aridez desértica que a qualquer esperança manda à merda.
A gaja da televisão diz que amanhã chove, porém – e que vão estar só 26 graus. Ver para crer.
(...)
Hei entretanto que sobreviver à noite transformadora da quarta em quinta-feira, 16 em 17. Deixar andar, excelente Raul, deixar andar.
Incluo neste caderno esta carta porque, enfim, mal não traz ao mundo. Tenho pensado em ti, que foste morituro ao tempo mesmo que nascituro. Isto é: que foste particípio-futuro sem passar de passado jamais presente. O meu ser escreve ao teu não-ser. Ou assim: juntar-me-ei à tua não-condição, a qual só por aqui, por escrito, pode conceber reunião com a minha.
(...)
Farás favor de dar a tudo isto a desimportância que merece. Há quem viva da maneira que pode – ou acha que pode; ou acha que vive. Há quem viva da maneira que deve – ou acha que deve, achando que vive. Como na canção do Zeca, “há quem viva sem dar por nada / há quem morra sem tal saber”. Há de tudo, como tudo deixa de haver. Não te preocupes.
D.
Sem comentários:
Enviar um comentário