96.
“NÃO ESTAVA MORTO, MAS DORMIA”
Coimbra, quinta-feira,
9 de Julho de 2020
I
Hoje
já, já alta madrugada (eram quase as seis), concluí a leitura cursiva &
integral de um livro que ainda bem não li aquando de tê-lo adquirido. Não tinha
então a maturidade & o saber que ele pede. Agora já tenho uma & outro –
embora a dita matura-idade seja prenúncio do apodrecimento. Mas vá lá.
Na
folha-de-guarda do volume, anotei então assim:
“16.i.i986,
300 paus.
Livro
comprado ao rapaz simpático que de vez em quando estabelece tenda de livros
numa das mesas do bar da Faculdade de Letras.
Tarde
de José Saramago no Teatro da mesma Faculdade: «Ficção e História» e muita muita simpatia. Breve
diálogo com ele José Saramago: disse-me que ‘O Mar Aberto’ tinha
derivado para ‘A Jangada de Pedra’ e que o Gabriel García Márquez era
realmente um grande escritor.” (…)
Sim,
verdade, assim foi. Lembro-me até dele dizendo-me que, da obra de Gabo, o livro
de que mais gostava era ‘Ninguém Escreve ao Coronel’.
O
livro comprado ao rapaz no bar era este: ‘Cartas de Van Gogh a seu Irmão
Théo’. É da Editorial Aster, Lx., s/d, com tradução de “C. do N.”
(que suponho Cabral do Nascimento, mas não hei certeza).
A
figura trágica do génio holandês está ali toda. Sublinhei muito. Talvez venha a
recorrer a alguns trechos da prosa epistolar deste tão desmesurado criador
& revolucionário da Pintura. Para já, esta da página 56 (datada de
Amesterdão, 30 de Maio de 1877):
“A
lembrança de tudo quanto amámos subsiste em nós e desperta lentamente no
declinar da nossa vida. Não estava morto, mas dormia; eis porque é bom ajuntar
um tesouro de recordações.”
II
Mulheres
antigas antigamente mulherando.
Encarnam
duramente a pedra mesma derredor.
Ainda
subsistem traços materiais delas.
O
comunitário porém é perdido no olvido.
Colectiva
deveras, a certeza individual do passamento.
Isso
lateja no progressivo anonimato, que é mato.
Não
é explicável a não ser pelo uso próprio.
Nem
revolta nem barulheira, jogo & partida só.
Política,
usura da cidade derramada ao vento.
Vagamente
comunidade, atenção, só vagamente.
Essas
mulheres rijas como árvores verbais.
Nenhum
homem à vista no dia antigo.
Solutos
na erva, alguns que se enforcam – ou pior.
Nenhuma
solução & já problema nenhum.
III
Crescida
já a tarde larga, fui colhendo elementos que, dispersos andando, afinal
permitiram dar-se por colhidos:
Luz
azul dando na camisa azul do homem sentado no flanco da cama, a gravata
aliviada, apequenado pela grande fadiga, mas fadiga afinal suave porque de dia
ganho:
Trecho
de mata apertadamente arborizada que o pré-poente caustica de ouro-velho,
estremecendo de brisa a vegetação em primeiro-plano, imóvel a retaguarda
violácea;
O
calor tornando espécie de fumo o próprio ar, que era de manhã cristalino,
infantil, facilitador de vida;
Pessoas
(poucas) formigando a baixo pelo dado poente do promontório, lentas à torreira
quase negra & decerto cega da hora;
e pronto, fez-se noite, é amplo o alívio, corre aberto o ar refrescado pela morte provisória do Sol, recolheram-se já as aves, hora de ir ao lixo, fumar no deserto ainda benigno da década começada.
97.
NÃO DANDO O LITRO,
MAS
Coimbra, sexta-feira,
10 de Julho de 2020
I
Este
ano, esquisito pelo vírus pandémico mas normal porque esquisito à la XXI,
é também para mim dúplice assim: abre janelas onde fecha portas. Matuto,
maduro, nisto. Não é grave nem é importante. O que aqui se corta, ali cresce. E
do avesso também.
II
Melícia,
a rapariga com que sonhou Graciano. Não são pessoas por inventar – por inventariar,
talvez. Que sei de um(a), que ignoro de ambos? Pois muito, se não quase tudo. Graciano,
que a não soube cortejar, ’inda hoje a sofre. Ela – nada disso. Mal se
apercebeu dele. E, mal se apercebeu dele, negou-se-lhe com veemente prontidão.
Ainda:
As
irmãs Flamínia & Eugénia Torrespada, moradoras da rua conventual que
chamada era do Habitáculo, depois da Alta Cruz, de Azedo Gneco finalmente. Filhas
ambas de Joaquim Aldo Leite da Penna de Torrespada – mas Flamínia, da primeira
esposa Anisette Maria de Castro; Eugénia, de Beatriz da Encarnação de
Sepúlveda, foram as primeiras pessoas regulares que aprendi a reconhecer na
rotina de uma Ulissoa que foi a minha há um quarto-de-século.
Era
pela tardinhanoitecendo. A primícia do Outono, sufocada ainda da obstinação do
Verão, dourava de luz & folhedo a praça, que uma fonte então perpétua
cascalhava de água ridente. As manas Torrespada saíam a papoilar em passeio. Vinham
de tomar chá em casa, arrotinhando discretamente (sabor a canela na garganta)
enquanto passaricavam suavemente suas botinas & suas sílabas privadas.
Pareciam-me mais velhas, cada uma, do que os dois séculos que quase perfaziam.
Só
podem, hoje, estar muito mortas – como eu já quase estive por ti.
III
(Achais
talvez que com descaro minto
nomes
& situações que aqui alinho?
Achai,
enfim, como bem mais bem achardes,
que
cada um é livre em seu livro.
Se
sentirdes em mim vil falsidade,
remédio
tendes pronto a V.º alvitre,
o
qual é irdes pisar rama mais verde,
que
p’ra isto escrever nem dou o litro.)
IV
À
face direita da vala, a ínsua crivada de tangerineiras dá a respirar um ar
citrino, perfumado de saúde;
Cimeira,
a casa senhorial, à parte o casebre do caseiro, da moagem, dos curros, da
adega, do celeiro;
Poço
fundo de boca larga, renque de sebe tratada, álea de pereiras-de-inverno,
trilho da caça, pinhal adentro, a partir da eira;
No
cubículo externo, o telefone, com porta alta, estreita & envidraçada;
Salão
concertante com salões de porcelana, pássaros pintados sobre madeira, móveis
preciosos como velhices lúcidas:
Aqui
moro mas me não demoro.
V
O
cérebro faz quanto pode por si. Atirado ao mundo, trabalha em demanda de uma iluminação
menos cerceada. Entretém-se entretendo o corpo que lhe serve de sul veicular. Em
torno dele, nadas & tudos oferecem-se-lhe ao escalpelo. Trabalha sem remuneração
prometida. É admirável, é vil, é honorável, é ignóbil, é sozinho como o cão que
antigamente farejava a própria solidão nos monturos suburbanos.
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