02/11/2020

VinteVinte - e vão 100 (integral) + 101 (só de II a IV)


Léo Ferré
(1916-1993)



100.

 

EXACTOS MESMOS

 

Coimbra, terça-feira, 14 de Julho de 2020

 

 

(Nem depois de morto se está livre do fel de um fariseu ou do coice de uma besta. Posto isto, entremos no trabalho poético do dia:)

 

Bill Evans & Bernardo Santareno

Ainda uma vez ajuntados num lent’ouvinte

Rosto ’inda cada um em cada rasto deixado

As obras vivas resgatam da morte os corpos-autores

Depois é mais vida no receptor

A pessoa pode muito bem ir indo às compras

Ir indo às compras & acontecer-lhe Bill ou Bernardo

Os próprios ou a cousa por eles amada.

 

O exacto mesmo ocorre sentindo

Carlos Paredes & John Le Carré

Eis dois mais que trabalham sempre

Dois rios que urdem o próprio vento no canavial ribeirinho

Dois tipos que fazem género não apenas humano

São outra coisa para lá do que se nos permite

É vê-los tomando qualquer coisinha ante o mar

Um arquivando radiografias, o outro aturando o pai.

 

Sim, Chico Buarque & Marguerite Yourcenar

Ao menos uma vez na vida eléctrica, aguada

A destruição periódica da Bélgica pelos Alemães

O Fluminense listrado a verdegrenábranco

O cancro invicto da companheira-devida-de-vida

Alexis & Geni, por assim dizer

Tudo enquanto ainda residimos no ar

Ou em, por assim dizer, Adriano & Marieta.

 

Ou Léo Ferré muito a tempo de Ruy Belo

As pequenas coisas das pequenas casas

As pequenas causas dos pequenos coisos

Aí onde dói a lucidez, esse grau de lucidez do azeite

Bem estará aquele que como acorde se deite

Não sei, sei sim que se é & nada até na manada

“Ils se mêlent à vous

Les Artistes”.

 

 

 

101.

 

AO DESPERTAR DAS MÁGICAS

 

Coimbra, quarta-feira, 15 de Julho de 2020

 

(...)

 

(II)

 

(Roxo, púrpura, lilás, violeta, turquesa.

Do dilúculo sem névoa se aclara a incerteza.

Este é o dia de dar uma volta a roupas & louças.

A noite foi de esfarrapadas visões calabouças.

Algures, áugures ressoam mortos ’inda comovidos.

Vozes da brancura, corpos gelados par’ali ’stendidos.

Roxo, púrpura, lilás etc.)

 

[III]

 

[E então Van Gogh, a páginas 88 daquele livro de cartas a seu irmão Théo de que V. falei já, em Julho de 1880, assim:

 “Há quem tenha na alma uma fogueira acesa, e ninguém vai lá aquecer-se (…)”]

IV

Aldina Romano, mulher de Gualter, residente com ele na povoação onde começa a rede de canais abertos à navegação mercante de baixo-calado. Ele é patrão-de-barco, ela gere a hospedaria. Seis quartos na sobreloja, sala-de-jantar & café no piso térreo. Vivem, vai dando para viver menos mal. Filho & filha emigrados em França, o rapaz em Nantes, a rapariga em La Rochelle. Ambos bem, graças-a-deus. Antes ambos nas franças do que por cá nas drogas.


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Canzoada Assaltante