29/11/2020

VinteVinte - 144 (com rasuras)




144.

 

ALGUM RECOLHIMENTO

 

Coimbra, sexta-feira, 18 de Setembro de 2020

 



Foi há coisa de quarenta anos, por aí. 
Na noite muito fria, recolhi-me um pouco. 
Ingressei na nave vácua da Sé Nova. 
Escutei o nítido silêncio petrificado. 
As madeiras icónicas já eram no Paraíso. 
Senti que a solidão não era o pior pecado. 

A minha idade era então aberta em flor. 
Havia coisas que já compreendia sem forçar a razão. 
Na noite aumentada do imo da igreja, serenei. 
Eram então vivos todos a que chamava meus. 
As ligações daninhas não me haviam ’inda maculado. 
Ali recolhido, purguei a decência do meu ateísmo. 

É por igual em recolhimento que hoje isto escrevo. 
Tornei-me um velhote desasado, pardal precário. 
Atrai-me muito o que a poucos interessa. 
Interessa-me nada o que atrai os rebanhos-bípedes. 
Tal não faz de mim uma espécie de santo. 
Tal faz de mim uma pessoa felizmente irrelevante. 

Choveu ontem um pouco, hoje também alguma coisa. 
Naquela noite privada da Sé Nova, não. 
Corria frígida mas enxuta a invernia velha. 
Era já poético o meu modo oratório. 
Deus nenhum ali me atrapalhava ou entorpecia. 
Eu era já infante senhor, em plena noite, do meu dia. 

Serão ímpios estes versos à face de muita gente. 
Assim seja – resto-zero apura a minha consciência. 
Era ali perto a morgue do instituto de medicina legal. 
Na Sé estava porém o Glorioso Cadáver do Rei dos Judeus. 
Estranha idolatria lhe impede o repouso. 
Há um par de milénios que pena de insónia. 

(...)
Volvidos tantos anos daquela noite, hiberno ainda. 
É-se catedral por dentro, justo é dizê-lo. 
E noite também, muitas vezes de manhã até. 

II 

Ele esbraceja as frases, é um tipo engraçado, 
arabesca ademanes, contumélias, salamaleques. 
Secretamente, pranteia mágoas do passado; 
publicamente, é entusiasta, dá a palavra & passa cheques. 

Ela é discreta, gosta dele, baseia-lhe a vida. 
Vem de gente pobre nada de terra pobrinha. 
É de escura infância, requeimada & refodida. 
Só tem medo à doença, q’a morte diz-lhe nadinha. 

Estão na mesa por baixo do televisor. 
Não ligam à bola (dá o Famalicão-Benfica). 
Ele está a meio da profecia orada com fervor. 
Ela finge escutá-lo, tendo na mão a carica 

da cerveja que ele esquece e que vai amornando. 
Casal de Coimbra, de bairro vetusto. 
Ela é Maria Clara. 
Ele é Carlos Augusto. 

III 

    Noites há em que eu só queria ir a casa de meus Pais jantar com eles, só nós três, uma terrina de sopa com conduto de enchidos & broa nova. Não pode ser. Estão mortos. E não servem para fora. 
(...)

IV 

Eu não tenho importância, ao menos cósmica. 
A senhora Rainha Elizabeth II também não. 
Faúlhas brevíssimas, sopra-nos um lume gelado. 
Ambos somos de um Nada esquisito. 

É crueldade dotarem-nos de formoso cérebro. 
Chamos por ele com ele em ele à Poesia & à Matemática. 
Depois, todavia, cerram-se-nos as portas. 
Elizabeth é quase centenária, eu a tanto não ousarei. 

(...)


Cada vez mais me parecem meninos os futebolistas. 
Surgem na televisão cheios de presente, zero-zero-ao-intervalo. 
É bonita a ingenuidade deles, a força generosa deles. 
Não se sabem provisórios, fugazes cromos da temporal caderneta. 

Elizabeth foi activa na II Grande Guerra. 
O pai dela fumava muito, padecia de gaguez. 
O tio ex-rei era um parvito néscio-burro. 
O meu tio, não. E o meu Pai não fumava. 


(...)

No resto, liberdade às vezes a cores. 

(...)


Sem comentários:

Canzoada Assaltante