15/11/2020

VinteVinte - 118 (tudo)




118.

 

EM DESCUIDOSA MATINA

 

 Coimbra, quinta-feira, 13 de Agosto de 2020 

 

 



À luz clara ao de leve esverdeada
respiro sem gastar pressa alguma.
Frúo o instante em frescura limonada,
vibra a matina destilada & una.

Pulsão de morte por enquanto assossegada.
Lembrança & esquecimento por ora amestrados.
Passa uma carroça través o pó da estrada.
No tope dela dois cães barbudos escanzelados.

De costas amplas, firmes, brancas, maduras,
a rapariga de encarnado bebe água-mineral.
Baixinha & forte, é uma cereja de Portugal,
orgulho de seu paizinho, que lhe vela as loucuras.

Além, a vivenda pintada a rosa, azuis lambris.
Moram-na há mil anos uns velhinhos:
o senhor José Custódio da Madeira Assis
& a esposa Dona Mercedes, que ’inda faz bolinhos.

Sobre esta folha poisou um insectozito,
mínima vida que recuso esmagar.
Tal eu, pode que seja poetazito
que em versos cisme a vida que durar.

Maravilha agora de gentil ágil acrobacia:
sobre o telhado mais alto, qual pomba felpuda,
um gatarrão branco como a neve mais fria
boceja ao sol sem clamar por ajuda.

Alinho estas linhas sem cuidar de amanhãs.
Derredor o mundo semelha-me o descuido.
Alice Morais, lá vai ela às maçãs
como umas que comi quando me fui do

Convento de Mafra até à Ericeira.
Era então soldadinho miliciano de infantaria.
Tinha toda a saúde – e à minha beira
comia-se maçãs, bebericava-se malvasia.

Ui! quão fundos os anos dor’então volvidos!
Já não desfaço oitenta metros em nove-vírgula-quatro-segundos.
Faço-os ora de autocarro entre velhotes transidos
que como eu já retoiçam findos os anos fundos.

Lembrei-me ora disto sem ser por algia.
Uma pessoa pensa sem disso se dar conta.
Pós o café quente, uma cerveja bem fria.
Não é grande despesa, não de grande monta.

Sei bem que o melhor, melhor bem seria
contar vivos a meus Pais na corrente matina.
Ir vê-los a casa, levar-lhes melancia
& beijos camoeses ao menino & à menina.

Não pode tal ser, assim não será.
Cuido entristecer, se p’ra tal me dá.
Distraiamo-nos, assobiemos para o lado:
olhai, que ali vai um sósia do Solnado.

Já me o coração marulha frituras,
involuntárias dorzinhas, pura nostalgia.
Eu já fui alta ave, príncipe de alturas
que ao orbe dos céus dava senhoria.

Agora envelheço, que à Lei não escapo.
Dou por mim por vezes de entreaberta beiça,
fiinho de baba, tipo esparadrapo,
estalactitando precário. Nem sei s’a

malta derredor me vai lobrigando.
Se dane o derredor! Cada um é de si!
Sou pastor de rosas que se vão rociando
ao seio de meninas de chita & organdi.

Mais triste fui ontem, mas logrei não chorar.
Curti cabedal de hora irremediável.
Fui ver (está tão doente) um irmão amável
que sem remédio amo sem até ou acabar.

Lá vim, cá voltei, faço-me desabsorto.
Emulo o Cesário, dou corda ao momento.
Ser pode q’estes versos, comigo já morto,
valham desta matina gentil documento.

1 comentário:

Jorge Castro (OrCa) disse...

Há aí Cesário, quem sabe Malhoa, tal qual relicário só de gente boa; mas o que há, inteiro, intenso e de mel, é um Abrunheiro. É um Daniel!


Grande abraço... e boa malha!

Canzoada Assaltante