Claude Monet
Le Déjeuner sur l'Herbe
102.
NO DESERTO DO DEPOIS
Coimbra, quinta-feira,
16 de Julho de 2020
I
Bem-vinda seja Belatriz
Ao dia novo em pomar aberto
Da noite ’inda fresca provinda
A noite sendo o mar mais alto.
Coração é apreensivo cavalo
Cavalo profundo de Altair
Restolho de verões perdidos
Menino roxo de frio inclemente.
II
Mana das fontes da cabeça a água pensada
Um lixo de sonhos recentes azeda ao calor
Trapos atrapalham gestos outrora libertos
Ser um corpo é justapor duas datas.
Destas coisas não falo já aos juízes
Mais siso há na punheta do que na cópula
O rio leva-se a si ao mar, à morte nós
Das nascenças da cabeça já a cã foge à manhã.
III
M’ina Luiza, a da cama 18, enfermaria 2
Prostrada como a tartaruga revirada
Sol doentio da luz-néon cegando-a
E no entanto forte na enferm’a’idade.
Quantos anos ora não tem, ora que morta?
Infanta já incontável, estrume de caracóis.
Lírio em pura labareda branca – no Cardal.
E eu que me dane, que vá por mim às rosas.
IV
A gente dos barcos pertence a outra cronosfera
Vagamente se assemelham a nós-aterrados
Se adoecem, curam-se pela maré aluarada
Se morrem, o mar os esquece sem remorso.
Nós em terra fazemos mal de pedra-de-amarração
Cultivamos ferragens, adiamentos, gaiolas
Praticamos doutorais certezas néscias
Deveríamos ir à merda – e vamos.
V
Doentes que cheiram a fénico & a mijo perdido
De branco amortalhados como cisnes contrariados
No claustro o limoeiro pende como s’enforcado
O padre velho descrê já do céu, gambiarra sem pilhas.
Como ovelhas transviadas, os sem-abrigo levitam
Tornam-se minerais com o esquecimento
O Verão carboniza-os contra os pilares da vi(d)a-rápida
Não voam, só corvoam, corvos da longevidade brusca.
VI
Família de aguarela piquenicando à beira-rio
Avó-mãe, filho-pai, nora-mãe, casalito de netos-filhos
Ovos cozidos, jaquins fritos, arroz-de-tomate, fruta
Vinho clarete, gasosa, groselha, água-do-luso.
(...)
VII
Casa de madeira, albergue dos últimos
Depois da horta o bosquete, depois o ribeiro
Fizeram felizmente longe a estrada
No céu purpúreo pisca uma que outra nave.
Reflectem-se no bebedouro os olhos dos animais
A figueira muito velha promete não morrer
Aqui há quatro estações, um ano reúne décadas
Os últimos têm nome, que com eles se some.
VIII
Ao espelho cada rosto dá de si
Dá de si a recordação instantânea
O canhoto é dextro, o direito é sinistro
O risco do cabelo sulca outra cabeça.
Na casa da serra não precisei
Não precisei de procurar além o que não havia
Conheci quanto era necessário
Ter voltado não foi falta nem acerto.
IX
Tórridos, hórridos dias estes
Só de noite é possível refrescar palavra
Dormir o dia degrada mas só assim
Só assim é possível fingir vida.
Não conheço fim a este inferno normal
Mataram as estações, nem isto é verão
É antes o deserto do depois
Não foi para isto que acordei.
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